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Gringolândia

CHICO MATTOSO

Apocalipse numérico

As eleições presidenciais americanas são uma espécie de Disneylândia do levantamento estatístico

Outro dia um amigo americano me disse que, num mundo ideal, teria um estatístico particular.

Acordaria de manhã, tomaria café, abriria a porta do armário e de lá sairia um homenzinho de camisa engomada e prancheta na mão, que diria quais as chances de o dia ser bom, de o trabalho ser produtivo, de aquela colega do departamento finalmente aceitar o convite pra sair.

O amigo estava brincando, mas não tanto. Ao longo das últimas décadas, os americanos desenvolveram uma relação peculiar com o universo da probabilidade. Não à toa, um dos esportes nacionais é o beisebol, cuja graça depende de o espectador ter acesso a um amontoado de percentuais sobre o aproveitamento de cada jogador -sem isso, o jogo é tão emocionante quanto uma partida de gamão.

Não é difícil imaginar, portanto, o que acontece a cada quatro anos, quando o que está em questão não é um arremesso perfeito, mas sim o destino do país. As eleições presidenciais americanas são uma espécie de Disneylândia do levantamento estatístico. Dia após dia, dezenas de institutos divulgam previsões minuciosas para cada Estado da Federação, inundando o noticiário de gráficos, mapas, tabelas e frações.

O fenômeno chegou a tal ponto que levou à criação de uma nova categoria profissional: o intérprete de pesquisas. Não basta saber o que dizem os institutos -é preciso que alguém dê a eles um peso, compare os tipos de abordagem, chegue a uma conclusão geral sobre aquele emaranhado de informações.

O bambambã nesse campo é um sujeito chamado Nate Silver, que nas últimas eleições conseguiu prever o vencedor em 49 dos 50 Estados americanos, além de todos os senadores eleitos.

Mas existe algo de podre no reino da matemática eleitoral. Há algum tempo os analistas têm notado uma tendência preocupante: a multiplicação de institutos e metodologias pode estar levando o país a um colapso estatístico. Não há Nate Silver que dê jeito -as pesquisas de opinião são tantas e tão diferentes umas das outras que estão deixando de fazer sentido, e é até possível que, no futuro, se descolem definitivamente da realidade.

Para os estatístico-dependentes, a notícia equivale a um pequeno apocalipse. Eu, ao contrário, vejo certa beleza no fenômeno. Ao abdicarem de tentar refletir as opiniões da população, as pesquisas deixariam de ser uma ciência para se transformar em outra coisa. Sem a "verdade" -essa embusteira- a atrapalhar o trabalho, os pesquisadores ficariam livres para criar.

Sairíamos do marasmo. Pense nas vanguardas do século 20: experimentaríamos a mesma explosão da forma, o mesmo impulso inovador. Imagino pesquisas rimadas, perguntas-performance, gráficos em forma de torta de espinafre.

De um dia para o outro, nossa sanha probabilística seria banhada de uma ineficácia poética, de um desvario libertador. Fernando Pessoa dizia que a arte é bela porque é inútil -quem sabe um dia não poderemos dizer o mesmo das pesquisas eleitorais?

CHICO MATTOSO, escritor, vive em Chicago. É autor de "Nunca Vai Embora" e "Longe de Ramiro", entre outros livros.

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