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Gringolândia

CHICO MATTOSO

Somente a verdade

Político em busca de votos é dotado da habilidade de torcer fatos para acomodá-los à sua plataforma

Um dos fenômenos mais curiosos desta eleição nos EUA é a obsessão pelo "fact check" (checagem de dados, em tradução livre).

Virou moda. Depois de cada debate ou entrevista, um batalhão de especialistas sai a público e, por meio de sistemas métricos que incluem bolinhas coloridas, ponteiros estilizados e pinóquios travestidos de Tio Sam, coloca na balança as declarações dos candidatos.

O objetivo é sempre o mesmo: pegar na mentira os espertinhos de ocasião.

A intenção não poderia ser mais nobre. Respeito à verdade, afinal, é requisito básico de qualquer aspirante a cargo público. Mas as coisas infelizmente são mais complicadas do que parecem.

Primeiro porque o material analisado é, digamos, bastante volátil. Todo político em busca de eleitores é dotado da habilidade de torcer os fatos para melhor acomodá-los à sua plataforma.

Um candidato está para a realidade assim como um hippie para a massinha de epóxi -seu sucesso depende da capacidade de transformar aquele corpo disforme em algo de apelo popular, seja um incensário viking ou um dado sobre exportações.

O negócio fica mais complexo quando percebemos que nem todos os especialistas em checagem são propriamente independentes.

Com os meios de comunicação ficando cada vez mais partidarizados, cada lado puxa a brasa pra sua sardinha.

Obama diz que criou 5 milhões de empregos? Uns garantirão que a afirmação é 100% verdadeira; outros, que é ela enganosa porque omite o número de desempregados no mesmo período -e por aí vai.

Posso estar enganado, mas minha impressão é que a mania do "fact check" tem mais a ver com a disputa por audiência que com uma empreitada cívico-jornalística.

No fundo, o objetivo é dar alguma concretude a algo normalmente difícil de avaliar. Em vez de perder tempo com questões complexas de administração, por que não dar ao espectador a sensação de que, enfim, é possível saber quem ganhou a discussão?

E tome placares, tabelas, ponteiros e pinóquios. O debate político definha na proporção em que os candidatos ganham elogios (e pontos) por terem cumprido com sua obrigação mais elementar -olhar para as câmeras e dizer a verdade.

É melhor do que nada, sem dúvida, mas tenho minhas dúvidas sobre a eficácia eleitoral da checagem. Basta pensar em Mitt Romney, cuja segurança e contundência no primeiro debate foram suficientes para suplantar um caminhão de disparates. Mas talvez o eleitor só esteja atrás de diversão.

Aboletado em frente à televisão, ele acompanha a lista de lorotas como quem confere os resultados do basquete.

Se nada muda, pelo menos o pessoal ganha assunto para a hora do cafezinho. "Viu o debate ontem? Fulano mentiu que só, né. Quer apostar que no próximo é o Beltrano quem ganha?"

CHICO MATTOSO, escritor, vive em Chicago. É autor de "Nunca Vai Embora" e "Longe de Ramiro", entre outros livros.

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