|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Bloqueio a Gaza faz de túneis negócio rentável e canal vital
Único elo do território com o exterior, subterrâneos proliferaram com cerco israelense
Pelas passagens são levados animais, comida, roupas, combustível, equipamentos e armas; buracos resistem a bombardeios israelenses
RAPHAEL GOMIDE
ENVIADO ESPECIAL À FAIXA DE GAZA
O ar é pesado, faz calor, e a
respiração, difícil, tem gosto de
terra. Não é preciso ser claustrofóbico para se sentir desconfortável dez metros abaixo do
solo, ainda mais sob as precárias estruturas de madeira que
escoram a terra em um dos
1.800 túneis subterrâneos que
ligam a faixa de Gaza ao Egito.
Não é reconfortante saber que
se está dentro de um alvo potencial de aviões israelenses.
Os túneis cresceram como alternativa ao rígido bloqueio
econômico imposto por Israel à
faixa de Gaza, após o movimento extremista islâmico Hamas,
que havia vencido as eleições
legislativas do ano anterior,
romper com o Fatah e assumir
o controle, em junho de 2007.
Hoje, as importações ilegais do
Egito têm papel vital na arruinada economia local.
Como as fronteiras estão totalmente fechadas, quase todos
os produtos são contrabandeados pelos túneis: comida, roupas, celulares, cigarros, motos e
combustível -perigosamente
armazenado em casa, em tinas
e galões. Até animais entram
em Gaza por baixo da terra.
A Folha entrou em uma dessas passagens. Para descer os
10 metros até o túnel propriamente dito, senta-se numa cadeirinha improvisada com ripas de madeira presas a cordas,
atreladas a um gancho. Um cabo de aço passa por uma roldana até o "carretel". É esse motor que solta o cabo até embaixo, trazendo para cima e para
baixo pessoas e mercadorias.
Dentro, é preciso quase engatinhar, as mãos no chão de
terra, ultrapassando galões e
sacos de produtos, sob a luz de
esparsas lâmpadas ligadas a
fios presos às paredes de contenção de madeira. Três rapazes, descalços, guiam o repórter com lanternas. Escondem o
rosto, mas posam para fotos, e
um exibe os bíceps trabalhados
na academia subterrânea, a face coberta pela camiseta, qual
um Hulk sem cabeça.
O túnel foi um dos afetados
pelo bombardeio israelense da
última quarta. Com britadeiras
manuais e pás, tentavam desbloqueá-lo. O caminho subterrâneo ficou obstruído por um
deslizamento de terra após cerca de 40 metros. Não fosse isso,
seria possível chegar ao Egito
por baixo do posto de fronteira
em 30 minutos -para entrar
oficialmente, são 5h30.
Trata-se de um empreendimento irregular, mas amplamente tolerado. Em Gaza, as
entradas ficam às claras, formando uma extensa fila de ostensivas tendas de plástico,
com intervalos de 20 ou 30 metros e buracos que parecem poços artesianos expostos.
Fica evidente que, se o Egito
quisesse, fecharia as bocas do
seu lado, interrompendo o fluxo -que hoje o beneficia. Israel, que acusa o Hamas de
contrabandear armas pelos túneis, poderia destruir todos
com poucos ataques, mas, durante a guerra, estima-se que
apenas 300 ou 400 dos cerca de
1.800 buracos tenham sido
atingidos por bombas.
A área onde foram construídos era residencial. Com o bloqueio e a proliferação do negócio dos túneis, quarteirões foram demolidos e deram lugar
aos buracos. "As pessoas venderam as joias de suas mulheres para investir como sócios
neste negócio", conta o homem
que se identifica como Abu Jihad, 31, sócio de um túnel construído há seis meses.
À distância, sente-se o odor
da gasolina que sobe por mangueiras até caminhões-tanques
ou caixas-d'água de 3.000 litros
presas a caçambas.
O dono do terreno recebe
participação do operador. Os
funcionários -de 10 a 20 por
túnel- recebem de US$ 30 a
US$ 50 dólares por dia. Um
quilo de carga, independentemente do conteúdo, custa US$
1. Assim, cem quilos de banana,
cigarros ou telefones custam o
mesmo. Passam de duas a três
toneladas de produtos diariamente por túnel. A maioria nega transportar armamentos,
embora um atravessador no
Egito tenha dito à Folha que
leva fuzis para a faixa de Gaza.
Os contrabandistas circulam
com desenvoltura, sentam para
almoçar ou conversar do lado
de fora, sem serem importunados por fiscalização, numa linha de "trincheiras" com terra
revirada, a 100 metros do muro
da fronteira com o Egito.
Guaritas de militares egípcios têm vista privilegiada dos
buracos. Na guerra, antecipavam bombardeios israelenses
aos donos de túneis. Segundo
comerciantes, o contrabando
chega a quadruplicar os preços.
Os 1,5 milhão de moradores de
Gaza paga a conta. O Hamas
cobra uma taxa anual dos donos das bocas, de US$ 4.000.
"Se Israel abre as fronteiras,
acabam os túneis", diz Ibrahim
Dia, dono de sapataria.
Texto Anterior: Reféns das Farc: Comissão dá inícia a processo de libertação Próximo Texto: Demora ameaça julgamentos sobre ditadura na Argentina Índice
|