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ENTREVISTA DA 2ª
LAUREANO MÁRQUEZ
O modelo de Chávez para a Venezuela é o de uma sociedade que seja unânime
Cientista político e humorista acusado pelo governo diz que Venezuela caminha por rumo que lembra o das ditaduras
MISTURA de cientista político, humorista e ator, Laureano Márquez, 46, não
perdeu a cabeça na última sexta, quando a ministra da Comunicação, Blanca
Eekhout, o acusou de "golpista, genocida e terrorista"
por um artigo no qual imagina uma Venezuela sem
Hugo Chávez. Colunista do jornal "Tal Cual", Márquez atuou por dez anos no mais antigo programa humorístico da TV local, que era transmitido pela RCTV,
colocada fora do ar pelo governo Chávez.
FABIANO MAISONNAVE
DE CARACAS
Laureano Márquez recebeu a
Folha em sua residência:
FOLHA - A Venezuela vive protestos pela saída do ar da RCTV e pela
crise energética, mas houve períodos parecidos nos últimos anos.
Qual a diferença atual?
LAUREANO MÁRQUEZ - Chávez
passou por diferentes momentos em sua evolução como político e como dirigente do país.
Sinto que a sociedade venezuelana vai percebendo que cada
vez há mais deterioração em
sua segurança pessoal, no abastecimento de produtos de primeira necessidade, no problema do fornecimento de energia. Ele tem sido eficiente para
manter o controle político, mas
muito pouco eficiente para a
administração da sociedade.
Ele é muito bom para manter o
poder, mas não é muito bom
para exercer o poder solucionando os problemas do povo.
O descontentamento aumenta em todos os setores, inclusive entre seus partidários.
A popularidade de Chávez está
em processo de decadência, e
ainda que seja alta para continuar no poder, o governo percebe a tendência. Isso deixa o
presidente muito nervoso, e a
eleição parlamentar [de setembro] se aproxima.
Há também fatos pontuais
que desatam as manifestações,
principalmente nos setores estudantis. Há muita sensibilidade com relação à liberdade de
expressão. O fechamento da
RCTV tem sido um ponto de inflexão. Nas duas vezes que ele
fechou a RCTV, na primeira
com sinal aberto, e na segunda,
com sinal via cabo, houve grandes problemas. E ele está vivendo este momento -pior do que
o anterior-, pois também há
muitos elementos acumulados.
FOLHA - Chávez perdeu o referendo sobre a reforma constitucional
em 2007, mas depois implantou
praticamente tudo o que estava
contido nela. Em 2008, a oposição
conquistou vários governos, que foram mais tarde esvaziados. O resultado das urnas perdeu relevância?
MÁRQUEZ - Não, acho que, pelo
contrário, as pessoas estão dando mais importância às eleições. Se as pessoas notam que
Chávez se sentirá afetado pelas
eleições, elas se entusiasmam
mais. Agora, há uma percepção
na sociedade de que Chávez
tem muito medo das eleições
que se aproximam. E Chávez
não para de pedir "façam um
referendo revogatório contra
mim", quase suplica. Então as
pessoas dizem: "Se Chávez
quer isso, não me convém".
A sociedade democrática venezuelana não tem outra saída
que não seja a eleitoral. E, como
não há outra saída, é preciso
apostar tudo. Nós já tivemos a
experiência de não ter ido às
eleições [parlamentares de
2005]. Foi um erro grave.
FOLHA - Os chavistas falam em democracia direta, parte da oposição
diz ditadura, e agora surge o conceito de autoritarismo popular. Como
define o regime venezuelano?
MÁRQUEZ - Uma das características deste sistema é que é difícil classificá-lo. É uma ditadura? Bom, neste momento, estou
falando com você e emitindo
conceitos contra o governo. Poderia ser perseguido, mas tenho emitido as minhas opiniões com relativa liberdade.
Outra coisa distinta são as consequências de ter uma opinião
como a minha, mas isso é um
tema à parte.
Formalmente, a Venezuela
continua funcionando como
democracia. Se alguém vê, de
São Paulo, e pergunta: há eleições? Sim. Há partidos de oposição? Sim. Há imprensa livre?
Sim. Isso é uma democracia.
Mas se alguém vê, de Caracas, e pergunta: há divisão de
Poderes? Sim, mas todos os Poderes estão nas mãos do Executivo. Na prática, há uma imposição do Executivo sobre os demais Poderes. Há imprensa livre? Sim, todos os dias saem artigos contra o governo, mas o
que acontece aos articulistas
contrários ao governo? Estão
cada vez mais cercados, cada
vez mais perseguidos, cada dia
mais limitados em sua capacidade de ação.
Aqui, há cada vez menos liberdade. Mas a diferença com
uma ditadura é que lá há perda
brutal da liberdade. A Venezuela vive uma coisa progressiva,
gradual, lenta, muito medida,
mas vai na mesma direção.
FOLHA - O que Chávez quer para a
Venezuela?
MÁRQUEZ - Chávez aspira a reformar a Venezuela, e não duvido de suas intenções, que podem ser boas. O problema é o tipo de modelo que Chávez está
instalando. Na minha opinião,
o modelo pelo qual a sociedade
assina o cheque em que ele é o
povo, em que tudo que ele diga
ou fale é em favor do povo. Isso
é muito oneroso para a sociedade. Nenhuma sociedade deve
endossar um homem para representar o povo. "Como eu sei
o que é melhor para a Venezuela e estou convencido de que é a
verdade, quem se opõe a mim é
um idiota, um traidor, um fascista, é um golpista e quer me
matar". Cada vez que alguém
não está de acordo, o presidente reage. O modelo de Chávez é
o da unanimidade, ele quer
uma sociedade unânime.
FOLHA - A oposição já tentou golpe
de Estado, greve nacional, boicote
eleitoral. Como ela está agora?
MÁRQUEZ - A oposição é muito
complexa porque, à diferença
do oficialismo, não há apenas
uma voz. Ha muita discrepância, como ocorre num ambiente democrático. Isso não significa que a oposição não tenha
cometido falhas gravíssimas. O
primeiro erro foi tentar buscar
uma via rápida, não democrática. Um segundo erro, não participar de processos eleitorais.
Outro erro, a falta de coordenação. A ameaça que vive a Venezuela é muito particular. Isso
exige que a oposição tenha um
senso de patriotismo. Eu não
gosto da palavra patriotismo,
mas é preciso que a oposição
entenda que há algo superior,
acima das parcialidades eleitorais, que é a nação. Outro erro é
não oferecer um projeto alternativo que chegue aos setores
mais sofridos, que apoiam o
presidente e podem estar cansados desses dez anos de estresse, de luta e de confronto.
FOLHA - Como Chávez mantém a
sua popularidade alta?
MÁRQUEZ -
Em primeiro lugar,
Chávez é um excelente comunicador. Fala como as pessoas
falam, de forma coloquial, e
conta as suas histórias e faz piada. Além disso, Chávez representou, e continua representando em boa medida, a esperança de que quem está no poder "sou eu". As pessoas sentem
que Chávez é alguém delas e as
representa contra os setores
poderosos da sociedade.
Por outro lado, Chávez colocou muitos recursos para gerar
a solução de alguns problemas,
como a saúde nas favelas, o que
antes não havia. Isso não resolve a pobreza, apenas põe panos
quentes, mas isso é outra discussão. As pessoas percebem
que o presidente está preocupado com elas.
E Chávez tem um bom controle midiático do assunto. Em
cadeia nacional, alguém se
aproxima, ele diz: "Qual é o seu
problema?" "Uma casa." "E de
que casa você precisa?" Ele se
dedica meia hora para resolver
um problema. Um presidente
não deveria dedicar meia hora
para resolver um problema. Ele
não deveria se dedicar a resolver a casa de Juan Rodríguez,
mas das 100 mil casas que deve
construir. Mas o efeito comunicacional disso é bárbaro.
FOLHA - O presidente Lula tem hoje bastante prestígio internacional e
muitas vezes apoia Chávez em momentos difíceis. Trata-se de "realpolitik" ou de afinidade ideológica?
MÁRQUEZ - Lula é um homem
muito inteligente, conhece
Chávez muito bem e se aproveita disso, sem querer ofender. Lula defende os interesses
do Brasil, o que é muito respeitável, mas Lula vê os interesses
do Brasil exageradamente. Eu
acho que Lula sabe que Chávez
falha em um montão de coisas e
deve saber que esse apoio gera
um benefício importante ao
Brasil. Lula se comporta como
um hábil malabarista, vai tentando fazer Chávez acreditar
de que está de fato com ele.
Mas, como se diz na Venezuela,
se há um louco na rua distribuindo dinheiro, quem agarra é
dele. E Lula o agarrou.
FOLHA - Qual a vantagem de ver a
política do ponto de vista do humor?
MÁRQUEZ - O humorismo é
uma parte importante de uma
sociedade, é uma forma de crítica, e é uma crítica pacífica.
Um humorista venezuelano dizia que o humor é uma forma
de fazer pensar sem que aquele
que pensa perceba que está
pensando. Quando a sociedade
tem senso de humor, é porque
está pensando a si mesma.
FOLHA - Chávez é informal, quebra
protocolos e está sempre rindo, mas
o sr. está enfrentando o segundo
processo vindo do seu governo. Ele
tem senso de humor?
MÁRQUEZ - Tenho pensado
muito sobre isso. É preciso o
senso de humor do senso de
chacota. A chacota não é necessariamente senso de humor,
ainda que possa parecer simpático e provoque graça.
O senso de humor passa por
fazer piadas de si mesmo e de
aceitar piadas contrárias. O
presidente Chávez faz muito
bem ao ironizar, fazer chacota
dos outros, mas não tem necessariamente senso de humor.
FOLHA - O sr. foi multado em 2007
e agora está de novo envolvido em
polêmica com o governo por causa
de texto humorístico. Como vê a
reação do governo a seu trabalho?
MÁRQUEZ - É uma reação exagerada, que atribui coisas ao
meu texto que eu não disse e
que nem sequer tem a ver com
o meu pensamento político,
que não é da intolerância nem
da agressão nem da conspiração. Mas tem a ver com o momento em que vive o país. O governo quer dizer aos opositores
que está disposto a ir muito
longe se alguém insiste em se
opor ao seu projeto. Mas, quando uma sociedade é tão arbitrária com o humor, algo de ruim
está ocorrendo.
FOLHA - Até porque, na sua história, Chávez não morre.
MÁRQUEZ - Exato, ele vive por
muitos anos. Eu quero que o
presidente tenha uma longa vida, mas não no governo.
FOLHA - Depois da Venezuela sem
Chávez, qual será o tema do seu próximo artigo?
MÁRQUEZ - Estava pensando
em escrever um artigo sobre o
cultivo de couve-flor na Dinamarca, é um tema que me interessa neste momento.
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