São Paulo, domingo, 01 de março de 2009

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Migrantes cubanos são "ilegais" em Havana

Decreto de 1997 proibiu fluxo do interior para a capital; batizados de "palestinos", os que chegam vivem clandestinamente em favelas

De janeiro a agosto de 2008, 2.397 pessoas foram deportadas; assentamentos são foco de ressentimento com o regime de Fidel Castro

FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA

Enquanto entretém Eduardo, agarrado a sua cadeira, Yoleinis tenta explicar porque há um ano, desde que ele nasceu em fevereiro de 2008, não consegue registrá-lo como cidadão cubano. Ela é de Santiago de Cuba, no leste, e não tem permissão oficial para viver em Havana. Por isso não lhe dão a certidão de nascimento.
A história da moça, de 20 anos, é uma das consequências mais dramáticas de um decreto baixado em 1997 pelo governo cubano para conter o fluxo migratório do interior para Havana, quando a crise apertou.
Desde então, quem é de fora da Província da capital tem de provar que tem um endereço "salubre" para poder trabalhar formalmente na cidade, receber a libreta -a quantidade mensal de comida e produtos de higiene subsidiada pelo governo- registrar um bebê ou conseguir leite para ele.
Sem direito ao território, migrantes como Yoleinis sofrem com medo da polícia e com o preconceito dos havaneros, que lhes batizaram de "palestinos". Se em Estados como São Paulo nordestinos já receberam "incentivos" para deixar a cidade, como passagens de ônibus, em Cuba, a desobediência dos migrantes pode dar cadeia.
Segundo dados oficiais, em 2008, até agosto, 2.397 pessoas foram "deportadas". Desde 2006, foram 20 mil, muitos reincidentes.
Para sair da condição de cidadãos de segunda classe, os imigrantes, a maioria do leste do país, podem conseguir uma permissão temporária, mas a permanente é uma luta num sistema burocrático: depende de uma combinação de fatores como grau de parentesco com os havaneros, metros quadrados da casa por cabeça, falar com o delegado local.
Como em Havana há grande déficit habitacional -com várias famílias sob o mesmo teto- a situação se complica ainda mais. Há quem venda o endereço para os "palestinos". Há quem consiga subornar funcionários para obter a permissão.
"Estou correndo para conseguir um endereço aqui para voltar a trabalhar. Dizem que tenho de ir para o oriente fazer o registro do Eduardo. Mas como? Nunca voltei a Santiago. Estudei aqui, me formei aqui", diz Yoleinis, em sua casa no assentamento ilegal de Los Mangos, na periferia de Havana.
Tudo isso ela também diz numa carta de quatro folhas, em bonita caligrafia a lápis, em que apela ao próprio Fidel Castro. Ela acha que pode funcionar entregá-la aos guardas da Praça da Revolução, a meia hora dali. "Vão entregar. Não adianta falar com mais ninguém."

Ressentimento
Los Mangos, com casas de madeira e metal, energia por "gato" e sem recolhimento de lixo, é um dos 46 assentamentos ilegais contabilizados oficialmente nos 15 distritos de Havana. Fica em San Miguel del Padrón, que abriga mais da metade dos "llega y pon", as neofavelas cubanas.
O local é quase como qualquer periferia da América Latina. Uma diferença é que, como em toda Cuba, as crianças, mesmo as ilegais, podem estudar, e as mães fazem pré-natal regularmente -uma dissonância em relação ao modelo migratório chinês, que proíbe o acesso a serviços como este fora do lugar de origem.
Mas os direitos param por aí. Daí o ressentimento e irritação que paira nas neofavelas.
"Não dizem que somos socialistas, que somos livres e soberanos? Sou cubano como todos os outros. Não estou ilegal na Espanha. Aqui não temos organizações que protestem contra o governo. Aqui quem faz isso é contrarrevolucionário", diz José, 25. Ele é reincidente. Há dois anos, foi pego vendendo produtos no mercado negro. Sem papéis, foi sumariamente deportado de volta para Santiago de Cuba, sem direito de passar em casa para pegar os pertences. Dois dias depois, voltou.
Ao lado dele, Ramón, 26, conta a mesma história: "Chamam de palestinos porque somos cidadãos de segunda, de terceira classe. Mas os "orientales" são os policiais, os professores; fazem tudo que o havanero não quer fazer".
Los Mangos vive com a promessa de ser regularizado há anos. Há cerca de três, numa rara ação conjunta pública em desafio ao governo, os moradores impediram que a polícia os despejasse do local. Uma casa foi derrubada e a população saiu às ruas aos gritos de "Viva Fidel" e "Em Cuba não há despejo!". Os policiais recuaram.
Para Aleida, 41, de Guantánamo, vendedora de café e cigarros em Los Mangos, a situação é sem saída. "Você acha que eles não sabem da situação aqui? Eles sabem. Só não sabem o que fazer com a gente."


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