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São Paulo, terça-feira, 01 de abril de 2003

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EM BAGDÁ

Chanceler iraquiano lembra guerras do período colonial e promete a morte aos invasores

"Britânicos já têm túmulos no Iraque"

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT", EM BAGDÁ

Ao cair da noite na segunda-feira, o chão em torno do cemitério de guerra do Portão Norte de Bagdá tremia com a vibração das bombas. O céu, cinzento com a fumaça do petróleo, estava salpicado de clarões causados pelos disparos da artilharia antiaérea.
E, por sob as nuvens de fumaça e as explosões distantes e luminosas dos projéteis de artilharia, o sargento Frederick William Price, da Real Artilharia, o cabo A. D. Adsetts, do Regimento de York e Lancaster, e o aviador de primeira classe P. Magee, da Real Força Aérea, continuavam adormecidos. Um lugar assustador para visitar, talvez, enquanto os primeiros ataques aéreos noturnos atingiam a capital na noite de ontem.
Nem tanto. Pois o ministro do Exterior do Iraque, Naji Sabri, falou desses túmulos ontem e despertou os fantasmas de passados colonizadores. Pois o sargento Price, o cabo Adsetts e o aviador Magee morreram todos durante a primeira guerra colonial britânica no Iraque, em 1921.
E o que foi mesmo que Sabri disse, vestido em seu uniforme do partido Baath, algumas horas antes? "Soldados britânicos já têm túmulos no Iraque, dos anos 20 e de 1941... Agora, terão novas sepulturas, nas quais receberão a companhia de seus amigos, os norte-americanos".
É verdade que há túmulos britânicos por todo o Iraque. Entre os mais tristes estão os de Kut-el-Amara -cidade já bombardeada pelos norte-americanos e britânicos, mas ainda não ocupada-, onde os mortos do grande e terrível sítio otomano da Primeira Guerra Mundial jazem entre os esgotos abarrotados da imunda cidade. Há milhares deles no Portão Norte, em Bagdá, na velha estrada para Mossul. O soldado Nicholson, do regimento de York e Lancaster, só tinha 23 anos quando morreu, em 12 de agosto de 1921, e o soldado Clark, do Real Corpo de Serviços do Exército, tinha 38 ao morrer, seis dias depois.
A primeira guerra de guerrilhas opondo nacionalistas iraquianos e invasores será revivida agora, de acordo com o partido Baath. "Vamos transformar o nosso deserto em um grande cemitério para os soldados norte-americanos e britânicos", disse Sabri. "As forças norte-americanas e britânicas que não se renderem enfrentarão a morte no deserto, ou terão de correr de volta para a proteção de seu regime títere no Kuait".
Enquanto mísseis cruzavam os céus de Bagdá em todas as direções ontem, um deles passou a apenas 60 metros de altura sobre o rio Tigre, explodindo contra um palácio presidencial, a temperatura da linguagem empregada esquentava proporcionalmente. Os novos colonizadores, segundo o chanceler, estavam usando a velha "regra de ouro" britânica do "dividir para conquistar" -esqueçamos por um momento que "divide et impera" é originalmente uma regra romana-, e jamais conseguiriam romper a unidade do povo iraquiano.
Do ministro da Informação, Mohamed Said al-Sahaf, surgiram alegações de que o moderno Exército britânico acabara de destruir uma usina de purificação de água em Basra, capaz de fornecer água para 1,3 milhão de pessoas, e que esse exército estava agora ocupado em trazer ao Iraque "água mineral do Reino Unido".
Um armazém foi destruído na cidade, disse ele, no qual 75 mil toneladas de alimentos estavam armazenados. Não há maneira de verificar essas alegações. E nenhuma, evidentemente, de confirmar as demais afirmações que ele fez nas últimas 36 horas, sobre a destruição de tanques, transportes de pessoal, helicópteros Apache e aviões de reconhecimento não-tripulados americanos.
As declarações soavam como se o Iraque acreditasse merecer ter destruído todo esse equipamento. Mas, com a televisão iraquiana mostrando imagens reais em vídeo de um tanque norte-americano Abrams e pelos menos dois transportes blindados de pessoal queimando -e com o comando anglo-americano no Qatar sofrendo de seu habitual laconismo-, quem pode dizer quantas baixas cada lado vem sofrendo?
Os EUA falam em centenas de mortos iraquianos, e o Iraque diz ter matado 43 soldados britânicos e americanos em combate.
Até que ponto essa retórica seria abandonada, de qualquer forma, se houvesse maneira de escapar à guerra? "A verdadeira diplomacia", anunciou Sahaf, "é matar os norte-americanos e britânicos no campo de batalha, para que sintam que seus sonhos não serão realizados. Não permitiremos que esses lacaios imundos se mantenham na terra do Iraque".
Lacaios? A expressão não costumava ser "lacaios e cães mandados" quando a União Soviética existia? Estamos mesmo voltando ao colonialismo? Já que os americanos não recuaram ainda de sua promessa de ocupação e governo militar, não é fácil evitar a questão. E nem é difícil imaginar o que o aviador Magee poderia pensar enquanto seu túmulo vibra sob as explosões de bombas lançadas pela mesma Real Força Aérea sob as ordens da qual ele morreu tanto tempo atrás no Iraque.


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