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ARTIGOS
A fúria de um mundo agonizante
Estamos prestes a jogar para o alto séculos de cultura humanitária, em favor de um mundo cuja escala moral é a sarjeta. Na guerra contra o Iraque, isso fica visível
O "consumismo" do qual falamos não mais existe, e o que existe está com os dias contados. Os "Iraques", os "Rios" e os "11 de setembro" são o grasnar desse abutre moribundo
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JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
No Iraque, dois países opulentos esmagam uma multidão maltrapilha; no Brasil, em especial no Rio, cidadãos pacatos,
indigentes armados, policiais e,
agora, até juízes são mortos como
insetos. O que explica tudo isso?
À primeira vista, a resposta pode parecer óbvia.
Por trás da guerra
a Saddam Hussein, diz-se, estão
os interesses das
companhias de
petróleo anglo-americanas, a ordem financeira internacional e a estratégia de dominação geopolítica
do governo republicano dos EUA;
por trás da carnificina urbana, a
concentração de
renda da oligarquia brasileira, o
dinheiro dos chefões da droga e a
corrupção de altos
escalões da administração pública.
A interrogação, porém, vai além
disso. Sabemos que o poder não
tem escrúpulos e que a disposição
para matar está potencialmente
inscrita em todos nós. A questão,
contudo, não são as mortes violentas, mas os motivos pelos quais
se mata.
O crime contra a vida, até recentemente, buscava se apoiar em razões compatíveis com nossos credos morais básicos. As guerras
entre Estados ou grupos étnico-religiosos, para se legitimarem
moralmente, invocavam a defesa
de valores elevados -"Deus",
"raça superior", "libertação do
proletariado", "civilização", "progresso" etc. Do mesmo modo, os
crimes comuns procuravam se
apresentar como justo revide a
ofensas físico-morais.
A cultura do respeito à vida exigia que a impiedade se ocultasse
na sombra da virtude. A infração
assassina se estruturava de tal maneira que o nexo entre a causa e o
crime se tornava inteligível à luz
dos princípios éticos dominantes.
Outra coisa são os crimes sem
razão ou por razões morais irrelevantes. Nesses casos, o abismo entre a causa e o crime é tão profundo que não temos como entender,
do ponto de vista moral ou emocional, o que aconteceu.
Nos dias atuais, é justamente isso que horroriza. As razões pelas
quais se mata são tão irrisórias ou
mentirosas que, frequentemente,
somos levados a pensar que só há
duas saídas: ou damos as costas
ao que vemos ou desejamos que a
lei do talião venha massacrar a
baixeza, o cinismo e a brutalidade
dos matadores. Em outras palavras, estamos prestes a jogar para
o alto séculos de cultura humanitária, em favor de um mundo cuja
escala moral é a sarjeta.
Na guerra contra o Iraque, isso
fica visível. A ferocidade dos agressores se torna ainda mais absurda,
dada a estupidez
da justificação.
Como líderes
políticos das duas
nações que, ao lado da França,
criaram a moderna democracia
ocidental foram
capazes de alegar
razões morais para propósitos belicosos ilegais, sabendo que se dirigiam a uma opinião pública alfabetizada e com
memória?
Na delinquência urbana, de forma análoga, para matar não são
necessários maiores pretextos. Se
a arma está engatilhada e o ímpeto diz sim, ai de quem está à mão!
Mata-se a avó por dinheiro para
comprar cocaína; uma adolescente de 14 anos morre, porque alguém quis roubar qualquer coisa
no metrô e enfrentou o tiroteio da
polícia; mata-se um professor
universitário porque não deveria
estar ali, na hora do assalto; matam-se policiais porque são "policiais", e bandidos porque são
"bandidos".
Enfim, mata-se, mata-se e mata-se. E o mais duro é que, se perguntarmos qual a verdadeira razão de
tantas mortes, a resposta vem nua
e crua: mata-se para manter vivo
um estilo vida nefasto e em vias de
extinção. As matanças em massa
que assistimos exprimem a fúria
de um mundo agonizante. Essa
monstruosidade social definha e,
nos últimos estertores, devora
corpos e esperanças, em uma espécie de canibalismo genocida
que parece saído das histórias de
ficção científica.
O que chamamos de "sociedade
de consumo", como mostra
Campbell, nasceu da aliança entre
a revolução industrial e a revolução moral protestante. O hábito
de adquirir objetos para fins de
ostentação social não é, por si, incompatível com o apreço por deveres morais. Pelo contrário, o
consumismo, nas origens, esteve
associado a ideais de liberdade individual, de valorização da intimidade, de reencantamento do convívio familiar pelo aconchego material dos lares etc.
A amoralidade ou imoralidade
do consumismo atual não se deve
ao hábito de comprar bens com
obsolescência programada. Deve-se à desvinculação desse hábito de
qualquer pretensão ao aperfeiçoamento ético.
Isso começou a ocorrer quando
os corpos e os sentimentos passaram a ser as novas "mercadorias"
de manipulação comercial e publicitária. A partir daí, o próprio
estofo da moralidade, a realidade
físico-emocional humana teve
seu valor ético degradado, e a
compra de objetos supérfluos se
transformou em uma compulsão
cega, alheia a seu objetivo inicial, a
felicidade emocional privada.
Desde então, falamos de um
"consumo" de bens materiais ou
símbolos de status, sem perceber
que o que está sendo verdadeiramente "consumido" é a vitalidade
de nossos corpos e
mentes, diariamente vendida e
comprada, usada
e abusada para
azeitar a máquina
ensandecida do
lucro.
Observadas de
perto, as promessas da "sociedade
de consumo" são
espantosas. Tudo
cabe numa lista
tacanha, onde, de
um lado, estão os
meios de evasão
-a cocaína, o
ecstasy ou o mais
novo psicotrópico
contra o mais novo sofrimento existencial- e, de
outro, a realidade social da qual
todos querem se evadir -o tédio;
a aridez da inveja e da competição; o medo do desemprego; o
tormento das decepções românticas; a obsessão pela magreza e pela boa-forma; a anorexia; a bulimia; as mutilações corporais; as
pancadarias adolescentes dos fins
de semana; a depressão; a insônia
crônica; o estigma da obesidade; o
receio da solidão; o exame fóbico
das taxas de colesterol, enfim, o
pavor do câncer, do infarto, da
doença de Alzheimer, da "feiúra"
da velhice etc.
O braço armado
da "sociedade de
consumo", com
ou sem dragonas,
mata e morre por
isso. Ninguém está bombardeando
o Iraque para defender a paz de espírito e o conforto
emocional dos
americanos, assim como nenhuma gangue carioca ou paulista mata pelo direito de
amar, de ser solidário ou de viver
em harmonia e
dignidade junto
aos seus.
Nos sujos subúrbios cariocas e paulistas ou no
ronrom feltrado dos bairros chiques do dito "Primeiro Mundo", a
aspiração cultural é a mesma: explorar o corpo e a alma, até o embotamento ou a exaustão, para
que a insensatez da vida que se leva não pareça tão real quanto é.
Philip Rieff, há quase 40 anos,
pensava que o declínio da cultura
trágica iria, finalmente, permitir o
surgimento de uma moral das satisfações humanas, diversa do
"controle consolatório" oferecido
pelas morais tradicionais. Errou
na previsão. A moral do "bem-estar consumista" nem nos trouxe
alento nem consolação. Antes, vivíamos para a felicidade que, raramente, chegávamos a ter; hoje,
matamos para continuar tendo a
infelicidade que já temos.
A sociedade ocidental -o Brasil, em particular- necessita, urgentemente, de um "fome zero
cultural". Mudar não basta. É preciso não agir como bestas a caminho do abatedouro. É preciso entender que o "consumismo" do
qual tanto falamos não mais existe, e o que existe está com os dias
contados. Os "Iraques", os "Rios"
e os "11 de setembro" são o grasnar desse abutre moribundo.
E, se os mais justos e decentes
não tratarem de enterrá-lo logo,
mais sangue e mais cadáveres vão
estar presentes no cortejo de seu
inevitável funeral.
Jurandir Freire Costa é psicanalista e
professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem
Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed. Rocco). Escreve esporadicamente na seção "Brasil 503 d.C.".
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