São Paulo, segunda-feira, 01 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Estratégia do Irã faz lembrar a Guerra Fria


Essa disputa é mais do que sobre transparência: é sobre orgulho nacional e sobre a insistência do Irã na auto-suficiência e na independência

DAVID E. SANGER
ELAINE SCIOLINO

DO "NEW YORK TIMES"

Irã e EUA começaram a revelar novas estratégias em sua disputa nuclear que parecem apontar para um confronto, enquanto procuram tirar partido de um relatório muito crítico -divulgado pela Agência Internacional de Energia Atômica na sexta- que traça o perfil de um programa nuclear funcionando a toda velocidade e envolto em um sigilo crescente.
O que foi mostrado nos últimos dias evoca, em muitos aspectos, os blefes e ameaças da Guerra Fria, mas decididamente com alguns novos elementos, em uma era nuclear que já é bastante diferente. E, como nos primeiros tempos da Guerra Fria, ambos os lados estão tentando reescrever as regras durante o vôo, servindo-se de todos os instrumentos de manobra disponíveis -das ameaças americanas de sanções contra o Irã às ameaças iranianas de corte no fornecimento de petróleo.
Para a AIEA, o Irã foi bem-sucedido ao conseguir, gradualmente, despistar os inspetores da agência, negando-lhes acesso a locais cruciais e recusando-se a responder questões sobre suspeitas de ligações entre os programas nucleares civil e militar do país.
Na sexta-feira, Gholamreza Aghazadeh, chefe da Organização Atômica do Irã, e outras autoridades do país descreveram seu programa de enriquecimento de urânio como "irreversível". Disseram que os EUA deveriam simplesmente aceitar isso como um fato -assim como hoje aceitam abertamente que Índia e Paquistão jamais abandonarão seus programas nucleares.
No sábado, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, disse que abandonar o enriquecimento de urânio "é nossa linha vermelha, e nós nunca a cruzaremos".
Mas ainda não se trata de uma contenda entre potências nucleares -acredita-se que o Irã ainda não tenha construído uma bomba, e os serviços de inteligência estimam que ainda sejam necessários entre cinco e dez anos para que o faça -admitindo-se que não haja nenhum esforço clandestino ainda não-detectado.
Mas existe um esforço por parte dos EUA e de algumas outras nações para reescrever as regras nucleares, afirmando que, ainda que esteja legalmente de acordo com o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, para enriquecer urânio apenas para fins civis, não se pode acreditar em Ahmadinejad -que falou em destruir Israel e restaurar o Irã como a maior potência do Oriente Médio.
Por despistar a agência nuclear sobre suas atividades -dizem aos governos dos EUA, da França e do Reino Unido-, o Irã abriu mão de qualquer direito que um dia possa ter tido.
Mas Bush reconhece tacitamente que a credibilidade dos EUA foi profundamente arranhada pelos fracassos dos serviços de inteligência em relação ao Iraque. Na sexta-feira, ele tentou afastar as suspeitas de que estivesse buscando a mesma base legal que justificou a invasão do Iraque: "Há uma diferença entre os dois países".
E, pela primeira vez, os EUA disseram publicamente, como fizeram com relação ao Iraque, que, se o Conselho de Segurança fracassar, eles organizarão "nações que pensem da mesma forma" para punir o Irã.
O Irã tem respondido com suas próprias ameaças, sabendo que o espectro do confronto provocará tensão no mercado de petróleo e empurrará os preços a novos patamares, enriquecendo o próprio Irã e jogando os problemas para Bush e os consumidores dos EUA.

O exemplo da Coréia do Norte
Mas, enquanto insiste que suas atividades estão dentro das obrigações previstas pelo Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o Irã ignora que a AIEA considera que Teerã escondeu por duas décadas algumas de suas atividades.
O relatório publicado na sexta acusa o Irã de continuar ocultando informações vitais.
Mas essa disputa é mais do que sobre transparência -é sobre orgulho nacional e sobre a insistência do Irã na auto-suficiência e independência.
Isso pode ajudar a explicar por que o Irã celebrou o enriquecimento de urânio com dançarinos em roupas tradicionais na rede de TV nacional.
O relatório dos inspetores da AIEA confirmou que o Irã foi bem-sucedido em enriquecer urânio em um estágio baixo, mas que será preciso muito mais para produzir combustível para uma bomba atômica.
""A questão aqui não é sobre se o Irã tem um programa de armas nucleares, mas se ele pode criar um programa assim", afirmou Gary Samore, que liderou os esforços pela não-proliferação nuclear durante o governo de Bill Clinton e continuou estudando o programa iraniano desde então.
É isso o que mais preocupa as autoridades do governo Bush. Elas observam que hoje é largamente admitido que a Coréia do Norte já possui várias armas nucleares, embora nunca tenha conduzido um teste nuclear. "Achamos que os iranianos olharam para os norte-coreanos e aprenderam uma lição", afirmou uma autoridade do governo Bush.
Seria um procedimento muito diferente do que aquele adotado pelos russos no final dos anos 1940, pelos chineses no início dos anos 1960 ou por indianos e paquistaneses no final dos anos 1990 -que realizaram explosões nucleares para darem prova de seu poderio.
E, dada a limitada capacidade dos inspetores da AIEA de examinarem atividades clandestinas, não há como comprovar as afirmações do Irã.
Devido ao risco de que o Irã possa construir uma bomba, Bush adotou a posição de que o Irã deve abandonar tudo. Na sexta, afirmou: "Os iranianos não devem ter uma arma nuclear, a capacidade de construir uma arma nuclear ou o conhecimento para fazer uma arma nuclear".
Russos e chineses vêem essa posição como não-realista. Uma autoridade do governo chinês afirmou que já é tempo de uma nova abordagem, de "détente", em relação ao Irã.
E, em Viena, o diretor-geral da AIEA, Mohamed El Baradei, deixou claro, em conversas com diplomatas, que o pragmatismo sugere que o Irã possa realizar alguma forma limitada de enriquecimento de urânio, monitorado constantemente por sua agência.
Mas há o temor de que a AIEA esteja vendo somente parte do programa e de que as respostas evasivas às perguntas da agência tenham como intenção ocultar um programa clandestino, em alguns lugar sob o deserto.
E, como o Irã restringe o acesso dos inspetores, será mais difícil saber àquilo com que o Irã mais se assemelha: o -bastante real- programa paquistanês que os iranianos perseguiram uma década atrás ou a miragem nuclear no Iraque.


Texto Anterior: EUA já falam em ignorar ONU sobre Irã
Próximo Texto: Estranhos no paraíso: EUA podem ter "dia sem imigrantes" hoje
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.