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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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CRISE EM CUBA

Situação na América Latina é "insustentável e insuportável", diz Fidel; para ele, mudanças de governo podem vir sem violência

"Cuba não teria o que tem sem o socialismo"

DO "CLARÍN"

Leia a seguir a última parte da entrevista do ditador Fidel Castro.
 

Pergunta - Diferentemente da década passada, surgem em toda a América Latina governos e propostas políticas que falam claramente de um cansaço da região com a injustiça própria do chamado modelo neoliberal. Isso é algo que aumenta a probabilidade de confronto com quem advoga esse modelo, especialmente Washington? Pensando nisso, como o sr. vê o futuro da segurança das democracias latino-americanas?
Fidel Castro-
Há perigo. Mas não apenas na América Latina -é mundial. O perigo decorre do risco de agressão ou tentativa de domínio da região. É um risco de ela ser submetida, de que se apoderem de seus recursos, o risco de imposição de um sistema realmente em crise. Tudo o que vem acontecendo não passa de várias expressões da crise da globalização neoliberal. Cuba ocupa o primeiro lugar -tem a honra de ocupar o primeiro lugar nesse risco.

Pergunta - Os governos de nossas repúblicas, incluindo o de Lula, no Brasil, falam da derrota do socialismo como alternativa.
Fidel -
Acho que os problemas concretos que estão aí precisam de uma solução concreta. Digo a você que nosso país, Cuba, não teria o que tem hoje, especialmente o que vai tendo em ritmo impressionante, se não fosse pelo socialismo. O aprendizado e a experiência também enriquecem. Em dado momento, a derrocada do campo socialista enriqueceu. Apesar de ter sido uma tragédia e uma infelicidade, porque nos deu de presente, a todos nós, a superpotência hegemônica.

Pergunta - Há 30 anos, o cansaço da injustiça do qual falávamos estava presente na América do Sul, e tivemos governos que a expressaram, mas foram experiências que tiveram final trágico, como Salvador Allende, no Chile, ou Héctor Cámpora e Juan Perón, na Argentina. Por que as coisas podem se dar de forma diferente hoje?
Fidel -
Foram coisas terríveis que aconteceram. Parecem mentira. Mas o momento atual é diferente. Eu diria que este é o melhor momento da América Latina, diferentemente daquele. Aquela rebelião era mais isolada. Hoje há um protesto generalizado, que abrange todos os países da América Latina. Então existe aqui uma situação que qualifico da seguinte maneira: é insustentável e insuportável. Ela criou essas condições objetivas que explicam uma série de acontecimentos em toda parte.

Pergunta - O sr. acredita que essas condições sejam sustentáveis no tempo, ou será que a América Latina corre riscos (e há exemplos, como o da Colômbia) de ter democracias menos democráticas, ou democracias tuteladas, ou retornos autoritários?
Fidel -
É uma pergunta complexa. Mas acho que a violência não parece ser o caminho. Tudo mudou muito, há fenômenos novos que foram se produzindo. Na Colômbia há um problema que já é antigo, o da violência.
Nenhum militar hoje pensa em dar um golpe de Estado. Pode ser que haja militares que sonham com isso. Mas ocorreu uma mudança também nas consciências. Os militares sabem que a situação social é gravíssima. O que eu não disse a você é que naquela época, 30 anos atrás, a população chegava a bem menos da metade da atual. Havia muito menos de 250 milhões de habitantes. Hoje há 534 milhões; a população cresceu enormemente. O emprego que cresce não é o emprego formal, mas o informal, no qual todos vão buscando garantir sua sobrevivência. A mesma indústria moderna hoje já não gera muitos empregos. O senhor olha para um lugar onde antes havia 300 empregados, e hoje são 50, para produzir, por exemplo, o mosquiteiro que usamos para tampar o tabaco. É o dobro da produção com um sexto dos trabalhadores.

Pergunta - O que exatamente o sr. quer dizer quando, agora, afirma que "a violência não parece ser o caminho"?
Fidel -
Digo que não vejo a violência como o grande fantasma -vejo as massas. E as massas estão começando a fazer coisas que antes não faziam. Posso citar um exemplo. É de algum tempo atrás, mas o Irã era o policial dos EUA na região. Era o país mais poderoso da região, aquele que possuía as armas mais modernas. Não obstante os xiitas provocaram um levante na sociedade e, sem armas, derrubaram o xá.
Bem, é um exemplo de algum tempo atrás. Mas, quando houve o caso do Sudeste Asiático, havia outro senhor poderoso na Indonésia, munido de um grande Exército. Ele se chamava Suharto. Foi muito tolerado porque tinha matado centenas de milhares de pessoas de esquerda. E assim, num piscar de olhos, as massas o derrubaram.
Não quero ir muito longe, mas também não quero ficar muito por perto. Talvez, se vocês pensarem um pouco, verão que ocorreram mudanças neste país [Argentina] sem que tenha sido disparado um único tiro. Eu o vejo como um exemplo, se é que não me proíbem de pensar, e se alguém se irritar e me disser que estou me intrometendo em assuntos internos, responderei que estou fazendo uma análise desde o ponto de vista histórico. Aqui e em outros lugares. Porque também no Equador -não é preciso ir mais longe do que isso- um dia os indígenas entraram no palácio e determinaram a mudança de governo, e os indígenas não tinham uma arma sequer. Aquele que pensasse em organizar uma ação de força para resolver os problemas, hoje, estaria realizando uma atividade pré-histórica.

Pergunta - O sr. fala da direita e da esquerda igualmente?
Fidel -
Estou pensando agora naqueles que quiseram mudanças porque se encontram nesta situação insustentável. Mas muitas vezes essas pessoas das classes médias exercem um papel muito importante. Quando acontecem determinadas coisas, as classes médias são perigosas, em certo sentido; elas têm conhecimento. Muitas vezes já vi que são os mais pobres que pagam o sofrimento. Mas, quando confiscam os recursos de um homem da classe média, o problema é muito sério. Não preciso falar disso a vocês. Vocês conhecem esse problema.

Pergunta - Sim, é um exemplo que podemos reconhecer...
Fidel -
Esses são fenômenos novos e, além disso, são mundiais. Não são apenas locais. Porque também há coisas novas, há conhecimentos novos. Existe muita falta de cultura, mas também saiu muita gente das universidades. É o que mais tem saído. Então elas têm conhecimentos. É terrível não possuir conhecimento. O saber é chave. Nós o vemos em nossa própria revolução. A nossa situação hoje é outra, porque antes éramos um país com 30% de analfabetos. Se você incluir os analfabetos funcionais, o índice chegava aos 90%. Hoje as massas têm tido um meio para se informar.


Tradução de Clara Allain


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