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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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CRISE EM CUBA

Um dos maiores líderes dissidentes afirma que a repressão foi um duro golpe e mostra a disposição de Fidel para o confronto

Riscos não vão deter a oposição, diz Payá

JEAN-MICHEL CAROIT
DO "LE MONDE", EM HAVANA

Cai a noite sobre El Cerro, um bairro decadente de Havana situado atrás da imensa praça da Revolução. Ofélia abre a porta da casinha. "Não, Oswaldo ainda não voltou", diz a mulher dele, preocupada. A tia de Oswaldo Payá, que mora a um quarteirão de distância, diante do parque Manilha, tampouco tem notícias sobre o mais conhecido dos dissidentes cubanos. A casa dela, um pouco mais espaçosa, abriga as entrevistas coletivas de Payá. O telefone não pára de tocar.
Acompanhado de seus dois irmãos mais novos e de amigos jovens do bairro, Oswaldo Payá enfim chega. "Nós somos reféns, vivemos em uma situação muito perigosa. A recente onda de repressão é um atentado contra a possibilidade de mudança pacífica, é uma busca de confronto", explica o principal promotor do Projeto Varela, a campanha em favor de mudanças democráticas por via constitucional. "Nós estamos nas mãos de Deus. Se me prenderem, outros me substituirão", prossegue o fundador do Movimento Cristão de Libertação, que diz encontrar em sua fé a força de que precisa para prosseguir no combate. Na pequena e mal iluminada sala, uma grande imagem do Sagrado Coração de Jesus fica ao lado de uma estátua branca representativa dos direitos humanos, cingida por um fio de arame farpado.
Oswaldo Payá não esconde que a prisão de mais de 80 oposicionistas, condenados a pesadas penas de prisão, constitui um golpe severo para os dissidentes. "Trata-se de uma operação destinada a destruir o Projeto Varela, particularmente nas Províncias. Das 76 pessoas condenadas, 42 são coordenadoras do Projeto Varela. Mas a mudança em Cuba não virá da ação de um grupo organizado; virá da mobilização dos cidadãos. Eles podem deter os oposicionistas, mas a causa profunda da crise é o antagonismo entre o povo e o regime. O Projeto Varela continuará, como campanha de cidadania, apesar dos riscos, da perseguição e das limitações que sofre a oposição", afirma Payá.
Em diversas ocasiões, nas últimas semanas, Fidel Castro mencionou a ameaça de intervenção dos EUA para justificar a repressão contra a oposição. "Não queremos uma intervenção estrangeira; isso seria um grande revés para o povo. Essa não é uma alternativa ou solução aceitável. Se alguém trabalha nesse sentido, é o regime, porque, para nós, não existe qualquer razão ou pretexto que justifique uma intervenção estrangeira", diz Payá. "O que precisamos é de solidariedade internacional para que Cuba possa mudar pacificamente."
O tom de sua fala, determinado, se anima em resposta às acusações do chanceler Felipe Perez Roque. O ministro diz que o Projeto Varela foi concebido, é dirigido e é financiado do exterior, por exilados conhecidos, como Carlos Alberto Montaner. "Isso é absolutamente falso; o Projeto Varela é uma iniciativa completamente autóctone", afirma Payá. "Redigi pessoalmente sua proposta, em 1996. Estava em gestação desde 1990, quando propusemos o primeiro diálogo nacional. Depois do revés sofrido com o Conselho Cubano -uma tentativa de reagrupar os dissidentes na metade dos anos 90-, propusemos o projeto, cuja base é a participação dos cidadãos, cujo objetivo é a recuperação dos nossos direitos e cuja espinha dorsal é a reconciliação, a soberania popular e a reafirmação da identidade nacional". Payá afirma: "O governo e o Partido Comunista cubanos negaram os valores fundamentais de nossa identidade nacional. Sovietizaram e descristianizaram o país".
"O Projeto Varela tem por objetivo recuperar nossa "cubanidade", para que cada cidadão possa exercer seus direitos e participar da reconstrução da nação, conservando o que houver de positivo e abandonando o negativo", insiste o engenheiro, de 50 anos.
Desde 1997, Oswaldo Payá é candidato à Assembléia Nacional. A despeito das 500 assinaturas que conseguiu recolher até agora, sua candidatura foi rejeitada. Por ocasião da visita do papa João Paulo 2º, em janeiro de 1998, o Projeto Varela começou a ser divulgado no exterior.
Em 2002, durante sua estadia em Cuba, o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter fez referência ao Projeto Varela em um discurso na televisão cubana, pouco depois que os promotores da iniciativa entregaram ao governo uma petição com 11.020 assinaturas solicitando mudanças democráticas por meio de um referendo.
Foi então que uma iniciativa dos dissidentes foi mencionada pela primeira vez na mídia controlada pelo Estado. O prêmio Sakharov de direitos humanos, concedido a Payá em dezembro de 2002 pelo Parlamento Europeu, e sua viagem de 48 dias à Europa e à América do Norte confirmaram sua posição de principal figura da oposição, ao menos no cenário internacional.
Payá foi recebido pelo papa, pelos presidentes Vicente Fox, do México, Vaclav Havel, da República Tcheca, e Hipolito Mejia, da República Dominicana, pelo primeiro-ministro espanhol, José María Aznar, e pelo secretário de Estado americano, Colin Powell.
O ponto alto, e o mais delicado, de sua viagem foi a visita a Miami, em janeiro passado. "É lá que vive 1 milhão de nossos irmãos, é lá que tantas pessoas gostam de mim e tantas outras me detestam", afirma Payá. Recebido pela Igreja Católica, ele se encontrou com partidários, majoritários na Flórida, e com seus críticos, membros de organizações anticastristas radicais que o acusam de ser "agente de Fidel".
"A maioria dos exilados apóia o Projeto Varela e deseja uma solução pacífica", constata ele. "Estranhamente, as manobras dos extremistas de Miami para nos dividir se assemelham aos ataques do regime. Mas eles não são mais fortes que a Stasi ou a KGB, que não foram capazes de impedir o colapso dos regimes do Leste Europeu. Nossa força é nossa transparência, contra a qual o sistema de espionagem e penetração deles não tem efeito. Renovo meu desafio: publiquem o Projeto Varela; por que eles têm tanto medo de que as pessoas venham a tomar conhecimento daquela folha de papel?"


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