São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Antiamericanismo exige olhar sóbrio dos EUA


A "guerra contra o terror" é empregada como uma cortina de fumaça que oculta a condução de vendetas


É no Iraque que Bush pode estar prestes a soltar uma praga de antiamericanismo que faria a atual época parecer ótima

SALMAN RUSHDIE

Nos dias 5 e 6 deste mês o Departamento de Estado dos EUA vai sediar uma conferência de alto nível sobre o antiamericanismo. É uma medida incomum e que revela o grau de preocupação americana com esse fenômeno cada vez mais globalizado.
O antiamericanismo pode ser simples e superficial, resumindo-se a falar mal de americanos. Um artigo publicado recentemente no jornal britânico "The Guardian" sugere que ""americano" indica um tipo de personalidade intensa, destituída de humor, que aprecia o jargão psicológico sem sentido e está inteiramente convencida de sua própria importância".
Mais seriamente, o antiamericanismo pode ser contraditório. Quando os EUA deixaram de intervir na Bósnia, isso foi visto como um erro; quando, subsequentemente, intervieram em Kosovo, isso também foi visto como erro. O antiamericanismo pode ser hipócrita. Usando jeans ou roupas da grife Donna Karan, comendo fast food ou cozinha ao estilo Alice Waters, com as cabeças repletas de música, cinema, poesia e literatura americanos, os apparatchiks da patrulha cultural internacional criticam a influência prejudicial da cultura americana que ninguém os força a consumir. Pode ser equivocado: a implicação lógica da oposição liberal ocidental à guerra no Afeganistão é que seria melhor se o Taleban continuasse no poder. E pode ser desagradável, e muito, como se viu com o coro de "bem feito!" que se seguiu a 11 de setembro.
No entanto, durante o último ano, a administração Bush vem cometendo uma série de erros de cálculo em sua política externa, e a conferência promovida pelo Departamento de Estado precisa reconhecer esse fato.
Depois de conquistar amplo consenso por pouco tempo durante a operação afegã, o retorno aberto e descarado dos EUA ao unilateralismo vem provocando revolta até mesmo entre seus aliados tradicionais. O dignitário republicano James Baker avisou ao presidente Bush que ele não deve tentar travar a guerra sozinho, pelo menos não quando se trata da questão de tão "pequena monta" quanto conseguir uma "mudança de regime" no Iraque.
Os seguidores de Bush vêm errando feio em todas as principais zonas de crise do mundo. De acordo com uma fonte do Conselho de Segurança, a lamentável falta de ação da ONU durante a recente crise na Caxemira se deveu ao fato de os Estados Unidos (com o apoio da Rússia) terem criado obstáculos a todas as tentativas feitas pelos Estados membros de obrigar a ONU a agir. Mas, se a ONU não puder intervir numa disputa amarga entre dois países membros dela, ambos potências nucleares cuja volatilidade política é crescente, para tentar diminuir o perigo de uma guerra nuclear, então para que ela serve?
Muitos observadores dos problemas da região também se perguntam por quanto tempo os EUA vão se fazer de cegos diante do terrorismo apoiado pelo Paquistão na Caxemira, devido ao apoio dado ao Paquistão à "guerra contra o terror" em sua outra fronteira. Muitos habitantes da Caxemira devem estar revoltados pelo fato de seu desejo por um Estado autônomo, que eles nutrem há muitos anos, estar sendo ignorado em nome da "realpolitik" americana.
E, à medida que o ditador paquistanês, Pervez Musharraf, vai se apossando de mais e mais poder e ferindo cada vez mais a Constituição de seu país, a decisão do governo americano de continuar saudando-o como defensor da democracia causa mais prejuízo à credibilidade dos EUA na região, que já é pouca.
E a Caxemira não é a única queixa asiática do sul. Os massacres no Estado indiano de Gujarat, a maior parte dos quais de muçulmanos indianos trucidados por turbas fundamentalistas hindus, já provaram ser o resultado de ataques planejados liderados por organizações políticas hindus. No entanto, apesar dos depoimentos prestados diante de uma comissão do Congresso, a administração americana ainda não fez nada para investigar as organizações sediadas nos EUA que financiam esses grupos, tais como o Conselho Mundial Hindu.
Assim como, no passado, setores americanos de origem irlandesa financiaram os terroristas do IRA Provisório, agora grupos pouco conhecidos nos EUA estão ajudando a pagar pelo homicídio em massa na Índia, enquanto o governo americano faz que não vê. Mais uma vez, a retórica supostamente nobre de "guerra contra o terror" está sendo empregada de modo a parecer uma cortina de fumaça que oculta a condução altamente seletiva de vendetas americanas.
A julgar pelo que se vê, Osama bin Laden e Saddam Hussein são terroristas que importam, mas fanáticos hindus e assassinos canadenses, não. Esse critério moral duplo gera inimigos.
Hoje, no auge da disputa em torno da estratégia a ser empregada no Iraque, o sul da Ásia virou problema secundário. (Outra coisa que gera inimigos para os EUA é o fato de sua atenção ter duração curta.) E é no Iraque que o presidente George W. Bush pode estar prestes a cometer seu maior erro e a soltar a praga de antiamericanismo que pode fazer a epidemia atual parecer uma época de saúde ótima e resistente.
Inevitavelmente, os motivos estão no conflito israelo-palestino. Gostando disso ou não, boa parte do mundo enxerga Israel como o 51º Estado americano, o cliente e substituto dos EUA, e o entendimento evidente que existe entre Bush e o premiê de Israel, Ariel Sharon, não ajuda em nada a mudar a opinião do mundo.
É claro que os atentados suicidas são reprováveis, mas, enquanto os EUA não convencerem Israel a fazer um acordo duradouro com os palestinos, o sentimento antiamericano vai continuar a crescer. E se, dentro do clima atual, intensamente carregado, os EUA de fato embarcarem na enorme e arriscada operação militar sugerida na segunda-feira pelo vice-presidente, Dick Cheney, então o resultado pode acabar sendo a criação da força islâmica unida que era o sonho de Bin Laden.
A Arábia Saudita quase certamente se sentiria na obrigação de expulsar as forças americanas de seu solo (dessa maneira satisfazendo a uma das principais exigências de Bin Laden). O Irã que, há tão pouco tempo, estava travando uma guerra longa e brutal contra o Iraque, com certeza vai apoiar seu antigo inimigo e pode até mesmo entrar no conflito, ao lado do Iraque.
O mundo árabe inteiro seria radicalizado e desestabilizado. Que virada desastrosa da fortuna seria se a temida guerra santa islâmica fosse iniciada não pela quadrilha da Al Qaeda, mas pelo presidente americano e seus assessores mais próximos!
Será que esses assessores mais próximos incluem Colin Powell, que evidentemente prefere a diplomacia à guerra? Ou terá a revisão da questão do antiamericanismo convocada pelo Departamento de Estado sido uma maneira de fornecer provas cabais capazes de substanciar a abordagem de Powell e enfraquecer a posição dos "falcões" aos quais Bush costuma dar mais ouvidos? A impressão que se tem é que isso é possível.
É paradoxal, mas lançar um olhar sério e sóbrio sobre os argumentos contrários à América pode acabar se revelando mais útil para os interesses americanos do que os argumentos patrióticos de "vamos lá!" que andam sendo propostos por toda parte.

Salman Rushdie, 54, escritor britânico de origem indiana, é autor de "Os Versos Satânicos", "O Último Suspiro do Mouro" e "Fury" (ainda sem título em português), entre outros livros.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Petróleo russo pode ser antídoto para crise no golfo
Próximo Texto: Panorâmica - Memória: Quinto aniversário da morte da princesa Diana é celebrado em Paris e Londres
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.