São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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Petróleo russo pode ser antídoto para crise no golfo

PATRICK E. TYLER
DO "THE NEW YORK TIMES"

Por trás da decisão que o presidente George W. Bush terá de tomar sobre lançar ou não uma guerra contra o Iraque está um conjunto de cálculos que deveria ser conhecido como "realpolitik" do petróleo. E a Rússia está no centro deles. Desde 11 de setembro, especialistas petrolíferos e políticos, incluindo o presidente russo, Vladimir Putin, têm se esforçado para apresentar a Rússia e seu crescente setor energético como o antídoto estratégico à ameaça de outro choque do petróleo.
Os grandes receios são de uma guerra no Oriente Médio ou de uma iniciativa contra os interesses ocidentais orquestrada pela Arábia Saudita e pelos pesos-pesados do golfo Pérsico na Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Muitas empresas petrolíferas dizem que o óleo do Oriente Médio já está custando entre US$ 3 e US$ 5 acima do preço, devido aos temores de uma guerra.
Mas, desde 11 de setembro, a Rússia vem empreendendo uma migração estratégica rumo ao Ocidente, migração essa que reforça a visão da Rússia como parceira crítica do Ocidente. E essa novidade está modificando a psicologia, tanto do mercado quanto da geopolítica.
Nem Bush nem Putin teriam a descortesia de afirmar que ele vem preparando uma apólice de seguro contra aliados. Mas, mesmo que a lealdade e as alianças se conservem entre Washington e seus amigos no golfo Pérsico, quem pode prever quais seriam os efeitos se Saddam Hussein disparasse mísseis Scud carregados de antraz, gás mostarda ou alguma substância radiológica terrível contra o principal terminal de carga saudita em Ras Tanura, semeando o pânico e obrigando o seu fechamento?
E, desde 11 de setembro, há um elemento adicional, que vem corroendo as relações entre Arábia Saudita e EUA -algo entre incerteza e desconfiança em torno da forte representação saudita entre os mártires de Osama bin Laden e a tolerância saudita pela cultura do jihad. Os sauditas, por sua vez, rejeitam a perda de iniciativa dos EUA em buscar um Estado palestino, tão evidente durante o governo de Bush pai (1989-1993) e na maior parte do de Bill Clinton (1993-2001). Hoje, EUA e Arábia Saudita tomam chá temperado com o veneno das recriminações não expressas abertamente.
No ano passado, Bush orientou o secretário da Energia, Spencer Abrahams, a acrescentar 108 milhões de barris de petróleo à reserva estratégica. Mas isso garante ao mercado americano apenas uma camada de absorção de choques.
"O primeiro princípio da segurança energética é a diversificação", diz o historiador e analista dos mercados petrolíferos Daniel Yergin, e, segundo esse critério, a Rússia de repente ganhou importância no mercado energético internacional. A queda pós-soviética na produção petrolífera bruta está sendo invertida; neste ano, a Rússia superou a Arábia Saudita, produzindo 7,28 milhões bpd (barris por dia) em março. As exportações petrolíferas russas -que chegaram ao nível mais baixo em 1994, com 3,16 bpd- devem atingir 5 milhões bpd neste ano ou no próximo.
"O setor petrolífero russo está crescendo em ritmo notável e está importando talentos, tecnologia e investimentos ocidentais, mas precisa, sobretudo, de mercados", disse Sarah Carey, advogada de Washington que integra o conselho de direção da segunda maior gigante petrolífera russa, a Yukos, que quer fornecer óleo para as refinarias americanas. Desde 11 de setembro, jogando com o medo que o Ocidente tem de ver seus suprimentos de petróleo perturbados, a Rússia tem encontrado maior tolerância para as táticas dominadoras que aplica nos mercados petrolíferos; a única reação manifestada pelos sauditas tem sido a de ranger os dentes.
Mas agora vem o porém: a Rússia não pode tomar o lugar da Arábia Saudita como garantia de fornecimentos estáveis de petróleo para o mundo. "Ela está produzindo em plena capacidade", diz um assessor da família real saudita. "Todo o mundo está produzindo em plena capacidade, exceto Arábia Saudita, Kuait, Abu Dhabi e Venezuela." E a parte do leão da produção excedente continua a ser franquia saudita.
"Os russos sabem disso, todo mundo sabe disso, e o que nós estamos dizendo é apenas o seguinte: não nos encurralem num canto", disse ele, referindo-se ao receio de que a Rússia, ao exagerar na produção, possa tentar tomar mercados sauditas. A ameaça implícita é que a Arábia Saudita poderia inundar o mercado para forçar uma queda nos preços, como ela já fez em outra ocasião. Como o petróleo saudita é aquele cuja produção custa menos (cerca de US$ 2 por barril, comparados com o preço de até US$ 15 para petróleo de produção nova), a família real saudita é a mais bem posicionada para resistir a preços muito baixos. "Temos a flexibilidade necessária para reduzir os preços e continuar a ganhar dinheiro", disse o assessor.
Mas a proeminência saudita praticamente não importa. O crescimento da indústria petrolífera russa e o aumento das exportações russas e da região do mar Cáspio vão ampliar o pool de produção não incluída na Opep ao longo dos próximos dez anos. E isso, como observa Yergin, vai tornar o mercado global mais resistente a choques, especialmente levando em conta a nova atitude russa em relação ao Ocidente.
A Rússia vem fundindo seus interesses com os interesses da segurança européia e ocidental na batalha contra o terrorismo, um realinhamento estratégico que reduz seus velhos temores quanto à expansão da Otan e de se ver cercada por aliados do Ocidente. As grandes empresas russas de petróleo e gás natural estão tornando sua produção mais limpa, o que faz delas alvos mais seguros para investimentos ocidentais.
As companhias petrolíferas russas estão se unindo a grandes petrolíferas ocidentais para fazer da Ásia Central uma grande região produtora de petróleo. A Rússia quer garantir que uma proporção grande de qualquer novo oleoduto que venha a ser construído passe por território dela, mas agora isso é menos importante, porque tanto a Rússia quanto o Ocidente estão começando a enxergar o valor da diversidade e da colaboração, num mundo em que o crescimento das novas economias só vai fazer a demanda crescer.
Em Putin, os novos barões do petróleo russos enxergam um líder disposto a defender seus interesses. "Putin é mestre em transformar o que ele tem em mais", diz James Richard, co-autor de um artigo publicado pela revista "Foreign Affairs" afirmando que "a disputa pela hegemonia energética entre os dois maiores exportadores petrolíferos mundiais, Arábia Saudita e Rússia, terá consequências fundamentais para a economia mundial".
Essas consequências não precisam necessariamente prejudicar os concorrentes, observam outros analistas. Se uma guerra no Iraque tumultuar os mercados, tanto Rússia quanto Arábia Saudita mobilizarão sua produção para suprir a demanda, mesmo que a Rússia não possua reservas tão vastas quanto a Arábia Saudita, nem uma capacidade excedente comparável à desta. Ainda assim, a Rússia quer novos mercados e provavelmente vai fazer o que for preciso para consegui-los, de modo que talvez seja inevitável que teste um pouco a sua força contra a dos gigantes do golfo Pérsico.
Uma vantagem para a Rússia é que aquilo que lhe falta em reservas petrolíferas ela compensa em gás natural. Ela já fornece um quarto do gás usado na Europa. Em matéria de óleo, a Rússia não gosta do argumento saudita de que deveria aguardar sua vez e aumentar sua participação no mercado com a demanda crescente vinda da Ásia. Esse argumento teria mais sucesso se Putin exercesse controle pleno sobre as gigantes petrolíferas russas e suas estratégias de mercado agressivas. Em lugar disso, ele se contenta em caminhar à frente da expansão petrolífera russa, esperando, entre outras coisas, que o crescimento energético possa atuar como incentivo para o resto da economia.
Os ataques de 11 de setembro impeliram a Rússia para o campo ocidental, com um lugar na Otan -embora não como membro- para discutir a segurança ocidental. Assim, a posição em que Putin se encontra para exercer a versão russa de "realpolitik" apenas se fortaleceu. Assim, é mais do que interessante que Putin tenha se posicionado entre os EUA e cada um dos Estados que Bush considera o "eixo do mal" -Irã, Iraque e Coréia do Norte. Putin vem dialogando com o norte-coreano Kim Jong-il para promover a agenda ocidental do controle de armas e, ao mesmo tempo, vender às duas Coréias o conceito de um mercado comum que os conecte à Europa, por meio das estradas de ferro russas.
No Irã, ele promove os interesses do setor russo de energia nuclear, negociando acordos para vender usinas nucleares. Como parceiro do Ocidente, ele ganha o direito de argumentar a favor dos direitos comerciais russos no Irã, ao mesmo tempo em que a administração Bush denuncia o apoio dado pelo Irã ao terrorismo e sua busca por armas nucleares.
No confronto com o Iraque, Putin aderiu à posição americana de que Saddam Hussein precisa abrir suas fronteiras aos inspetores da ONU ou enfrentar as consequências. Mesmo assim, ele vem mantendo abertas as linhas de comunicação com Bagdá, para não perder seus contratos multibilionários para desenvolver novos campos petrolíferos iraquianos. E a Rússia, cujos equipamentos construíram o Exército iraquiano, provavelmente será a fornecedora do sucessor de Saddam, possivelmente até competindo com o Ocidente nessa área.
O conceito de um Estado russo que está recomeçando a ganhar força garantindo a segurança energética do Ocidente está começando a funcionar em benefício da Rússia. Em parte devido à relação que Putin mantém com Bush, o conceito parece ser menos ameaçador do que a maioria das previsões traçadas para a Rússia há alguns anos, mesmo que o novo dinamismo russo não chegue a alcançar a costa mal-humorada do golfo Pérsico.


Tradução de Clara Allain


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