São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

REGIME MILITAR

Em depoimento inédito, ex-líder estudantil conta como foi vítima da cooperação Brasil-Argentina na repressão

Argentino relata tortura em praia do Rio

MARCELO STAROBINAS
DA REDAÇÃO

Na década de 70, os diplomatas americanos na América do Sul relatavam com detalhes a Washington os casos de desaparecimentos, tortura e violações de direitos humanos pelos regimes militares da região.
Uma história em particular, porém, saltou aos olhos do cônsul dos EUA no Rio de Janeiro: refugiado no Brasil, o líder estudantil argentino Guillermo Torres Castaños, 20, havia sido sequestrado em Copacabana, em 24 de julho de 1977. Segundo ele, agentes da repressão da Argentina e do Brasil o haviam torturado juntos na cidade.
"Este é o primeiro indício que temos de que as polícias federais argentina e brasileira estariam investigando cidadãos argentinos no Brasil e possivelmente cooperando para a sua repatriação", afirmou o cônsul, num dos 4.677 documentos sobre a ditadura argentina (1976-83) abertos ao público neste mês pelo Departamento de Estado americano.
O caso confirmava as informações de que dispunha o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. Em agosto de 1976, segundo documento publicado pela Folha, Kissinger diz saber de um acordo secreto entre Brasil e Argentina para "caçar e eliminar" conjuntamente militantes de esquerda nos dois países.
A ação que atingiu Castaños era possivelmente resultado da Operação Condor -projeto de cooperação para o combate a subversivos do qual participavam Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia e Paraguai.
Em entrevista por telefone, o argentino contou à Folha como foi sequestrado e torturado e, num golpe de sorte, conseguiu escapar dos policiais brasileiros e argentinos no Rio.

O sequestro em Copacabana
Fui sequestrado numa rua paralela à praia por agentes brasileiros. Estava diante de um cinema quando me agarraram por trás.
Jogaram-me dentro de um carro, debaixo do banco. Levaram-me a uma praia. De repente, chegaram dois militares argentinos. Foram eles que começaram a me torturar. Conectaram uma agulha elétrica na bateria do carro e começaram a dar choques e a bater em mim. Fui torturado ali na praia, a uns 40 minutos de Copacabana.
Os argentinos mostravam um organograma com nomes e queriam saber quem estava no Brasil. Eu desconhecia aquilo tudo. A polícia brasileira queria saber qual relação tinham os argentinos com os brasileiros, quem me dava alojamento no Rio e como chegara ao Brasil.

Brasil x Argentina
Estive preso por quase seis dias. Levaram-me a um subsolo com celas de um metro quadrado. Os que mais me batiam eram os argentinos, que dirigiam os interrogatórios. Eles vinham àquele lugar com total liberdade, interrogavam-me e colocavam-me de volta na cela. Faziam o que queriam, como se estivessem em casa.
Os brasileiros e os argentinos tinham interesses distintos. Isso acabou me salvando. Os argentinos queriam me levar logo para a Argentina. Já os brasileiros queriam que informações sobre as relações entre os refugiados argentinos e as organizações brasileiras. Por isso, tinham interesse em manter-me no Rio.
Os argentinos pediam aos brasileiros que cooperassem. Os brasileiros respondiam que estavam cooperando e que tinham de entender que eles tinham outras necessidades. Isso tudo na discussão sobre o que fariam comigo, na minha frente. A cooperação era aberta.

Os "passeios" no calçadão
Eles me levavam para dar voltas no Rio. Amarravam uma madeira ao redor da minha perna, que me impedia de correr para fugir. Levavam-me de carro e me deixavam na praia de Copacabana. Faziam-me caminhar pelo calçadão de ponta a ponta, no meio das pessoas. Diziam que os outros argentinos se aproximariam para falar comigo se me vissem. Assim, eles os prenderiam. Dois agentes brasileiros me seguiam.
Tiravam-me todos os dias da prisão para caminhar, de manhã e à tarde, sempre em Copacabana.
Tinha medo porque minha mulher e meu filho de três meses estavam na cidade. Se ela me visse, viria falar comigo. Era um sofrimento terrível.

A fuga no fusca
Numa das vezes em que me levaram a Copacabana, estacionaram o carro, um fusca. Havia dois policiais brasileiros. Um deles foi comprar cigarros, enquanto o outro me tirava do carro. Àquela altura, já estávamos amigos, pois conversávamos muito.
Reclamei que a madeira estava machucando minha perna. Pedi que afrouxasse um pouco. Quando ele afrouxou, dei um chute e um empurrão. Tomei o volante e fugi com o carro.
Minha mulher me recebeu no apartamento onde estava. Contamos à ONU o que havia ocorrido e vieram nos ver. Devo minha vida à ONU. Tiraram-nos do Brasil em 48 horas. Para mim era uma questão de vida ou morte.

Reencontro com o sequestrador
Tive de ir à polícia para obter um atestado médico para poder deixar o Brasil. No elevador do prédio da polícia, deparei-me com um dos sequestradores. Eu estava com Guy Prim, encarregado da ONU no Rio. Não fiz nada. Depois que ele saiu do elevador, contei a Prim quem ele era. Fui aconselhado a não dizer nada.
Foi um golpe tremendo reencontrar o sequestrador ali. Era a prova de que faziam aquilo legalmente. A estrutura da polícia brasileira estava oficialmente colaborando. Havia um projeto conjunto.



Texto Anterior: Oriente Médio: Mísseis matam cinco palestinos na Cisjordânia
Próximo Texto: Refugiados causavam preocupação ao Brasil
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.