São Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 2010

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Terra do nunca

Haiti ganha nova preocupação: cada vez mais, jovens deixam as famílias e montam seus próprios núcleos nos acampamentos de desabrigados pelo terremoto

Fábio Seixas/Folhapress
Criança em área que concentra adolescentes em acampamento de Porto Príncipe

FÁBIO SEIXAS
ENVIADO ESPECIAL A PORTO PRÍNCIPE (HAITI)

O nome dela é Lovely.
Tem 16 anos. Usa um vestido azul e Havaianas brancas com bandeirinhas do Brasil.
E proclama, com o orgulho que lhe resta, que é dona do próprio nariz. Tanto que deixou a companhia da família para morar com duas amigas, as primas Cristila, 16, e Ruth Saint-Fleur, 15.
Um sonho para muitos adolescentes mundo afora não fosse tudo o que cerca essa história: a miséria dos acampamentos de desabrigados pelo terremoto de 12 de janeiro no Haiti. Uma tragédia que matou 200 mil pessoas pelo país e que deixou 1,5 milhão sem casa.
"Não vou para a escola, não tenho nada, não fazemos nada o dia todo. Mas essa era minha única opção. Ninguém mais vai mandar em mim", diz Lovely, após longos segundos de silêncio, preparando a resposta. Ninguém vai mandar nela.
Nem os pais, que a forçavam a mendigar e que, para sua indignação, ficavam com todo o dinheiro que ela trazia para o assentamento. "Ninguém".
Como Lovely, Ruth e Cristila, centenas de crianças e adolescentes deixaram as famílias nos últimos meses e formaram seus próprios núcleos nos assentamentos.
A lógica deles é direta, nua e crua. É mais fácil para os mais jovens conseguir esmolas. Quanto mais garotos e garotas num mesmo grupo, mais dinheiro arrecadado. Tudo isso, sem o "aborrecimento" de adultos por perto.
Mais: em muitos casos, pais e mães não se importam com a saída dos filhos. Pelo contrário. Ganham uma preocupação a menos.
Não há estatísticas, não há projeções. Mas há a realidade. O fenômeno é perceptível por toda Porto Príncipe, e preocupa o governo do Haiti.

BABY BOOM
"Começamos a perceber há quatro meses... Tendas, nos acampamentos, em que só vivem jovens. Toda manhã, eles se juntam e saem às ruas, pois sabem que podem conseguir comida e dinheiro mais facilmente", conta à Folha Witchner Orméus, diretor de Juventude e Integração do Ministério da Juventude, Esportes e Ação Civil.
"No cenário dos acampamentos, as vozes dos pais não funcionam mais", diz.
O ministério já imagina o próximo problema.
"Esperamos um "baby boom" para daqui a alguns meses. E isso será decisivo para a vida desses jovens, porque uma menina que tem um bebê dificilmente voltará para o banco da escola. O governo não pode fazer muita coisa", afirma Orméus.
O alto número de órfãos é outra preocupação -eles são potenciais futuros sócios dos "clubinhos". Pode ser o futuro de Gadael Lestin.
A Folha o encontrou brincando próximo a lixo a céu aberto, galinhas e porcos no acampamento Camp de Mars, um dos maiores da capital haitiana.
"Ele passa o dia brincando com outras crianças, e acho que será assim por muito tempo. Nós não temos dinheiro para mandá-lo para a escola", conta a tia, Darlene Lucianel, 22, que há dois meses deu à luz uma menina. Gadael tem 3 anos.
Ali perto, um helicóptero da ONU passa baixo, levantando roupas num varal.
Barulho providencial para Emanuela Batol, 15, que está envergonhada. Após repetir o orgulho de Lovely, o tal "ninguém manda em mim", ela admitia que, às vezes, precisa recorrer à família.
"Eu tento vender algumas coisas no mercado. Batatas, doces, bolos que eu faço. Mas quando não dá, eu bato na porta da minha tia."
Emanuela mora com Sebastian Crespac, 14. Vivem, a seu modo, e como tantos outros vizinhos, sua versão particular da Terra do Nunca. Sem saber que, talvez, não sejam os protagonistas.
Sem saber que, talvez, estejam no papel da trupe dos garotos perdidos.


O jornalista FÁBIO SEIXAS viajou a convite de Fundo de População das Nações Unidas.


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