São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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"Viver se tornou complicado", diz "cliente" com reumatismo e câncer

DA REDAÇÃO

Sofrendo com um reumatismo e um câncer de próstata incurável, o astrofísico alemão Herbert Mataré, 90, decidiu que não vale mais a pena continuar vivendo se a doença lhe causar sofrimento. Resolveu contatar a organização suíça Dignitas para preparar um suicídio assistido quando o avanço da doença o incapacitar para o trabalho.
Vivendo há 50 anos nos EUA, Mataré mantém-se ativo. Membro de um grupo de consultoria e ex-professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), ele trabalha atualmente em um estudo sobre "eletrônica do estado sólido", tema de um dos três livros que publicou.
"Eu ainda posso trabalhar, ainda posso andar, e até agora não tenho sentido muita dor. Mas, assim que a situação se complicar, vou a Zurique acabar com isso", disse ele à Folha. Para Mataré, viver se tornou "muito complicado e doloroso".
Ele diz ter convencido a filha, que vive na Alemanha, a apoiar sua decisão. Mas seu irmão Helmut Mataré, 84, que vive na cidade de Bertioga, no litoral de São Paulo, diz não concordar.
"Acho muito triste que ele tenha chegado a esse ponto. Gostaria de tentar demovê-lo dessa idéia", diz. "Acho que, apesar das doenças, ele ainda tem saúde suficiente para levar uma vida calma", afirma Helmut.
Leia a seguir a entrevista que Herbert Mataré concedeu à Folha, por telefone, de Malibu, na Califórnia, onde vive. (RW)

Folha - Por que o sr. decidiu fazer um suicídio assistido?
Herbert Mataré -
Porque não tenho muitas chances de cura. E aqui [nos EUA] não existe a permissão legal para a eutanásia. Considero isso um direito humano básico. A eutanásia deveria ser um direito humano mais básico que o de ter filhos.

Folha - Que tipos de problemas de saúde o sr. tem?
Mataré -
Tenho muitos problemas, estou com 90 anos. Tenho reumatismo, câncer de próstata...

Folha - E então o sr. decidiu que não quer mais viver?
Mataré -
Não, a questão é que ainda tenho trabalhos que quero fazer e que ainda posso fazer. Mas queria estar seguro de que eu posso ir lá [a Zurique] a qualquer momento, quando necessário, para pôr fim à minha vida.

Folha - O sr. não sente mais prazer em viver?
Mataré -
Não, é muito complicado. É doloroso, tenho de tomar muitos remédios. Quando não puder mais trabalhar, vou para Zurique colocar um fim nisso.

Folha - O sr. já teve alguma dúvida sobre essa decisão, de caráter religioso ou ético?
Mataré -
Devo dizer francamente. Sou um astrofísico, tenho convicção sobre a natureza efêmera de nossa existência neste pequeno planeta. Não tenho conexão com nenhuma fé tradicional.

Folha - Então o sr. não tem nenhum temor em relação ao suicídio?
Mataré -
Sou agnóstico. Eu acho que a vida humana é uma situação temporária, assim como qualquer vida orgânica, que vai e vem.

Folha - E por que o sr. decidiu que a opção é ir para Zurique para um suicídio assistido e não se suicidar sozinho?
Mataré -
Eu pensei em fazer isso. Enforcar-me é muito difícil e doloroso. Se usar uma arma, poderia ter algum problema, errar o tiro e não morrer. Tudo isso pode ser muito doloroso também para os meus parentes. Quero fazer isso de maneira que meus parentes não tenham nenhum problema.

Folha - O sr. já está planejando a viagem?
Mataré -
Eu ainda posso trabalhar, ainda posso andar e, até agora, não tenho sentido muita dor. Mas, assim que a situação começar a se complicar, vou discutir a questão com minha filha. Ela vai me acompanhar a Zurique, e vou acabar com isso lá.

Folha - Mas ela não poderá ter algum problema legal depois?
Mataré -
Não, ela vai estar fazendo o que eu quero. O que eu acertei com esse grupo em Zurique. Não se pode censurar qualquer outra pessoa por isso. Minha filha provavelmente não queria que eu fizesse isso. Tenho de pedir, implorar a ela, para tomar conta depois das minhas cinzas.

Folha - O que sua família diz sobre isso?
Mataré -
Bem, tenho minha filha na Alemanha, com quem discuti o assunto e que não queria tomar parte nisso. Mas ela teve de concordar finalmente, porque eu não posso continuar mais. Depende de mim colocar um ponto final na minha vida, e eu decidi que o que vivi já é o suficiente.


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