São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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A EUROPA DOS 25

Cosmopolitas do Leste Europeu, que enfrentaram o domínio soviético, devem rejeitar tecnocracia de Bruxelas

Intelectuais da "nova Europa" reagem

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

Quando, em 1989, caiu o Muro de Berlim, os países que tinham passado as décadas anteriores do lado errado daquilo que Churchill batizara de Cortina de Ferro comemoraram não apenas sua libertação, como também seu retorno à Europa.
O processo que culminou com o fim do bloco soviético havia se iniciado em meados daquele ano com a abertura da fronteira entre a Áustria e a Hungria. Através dessa brecha, veranistas da Alemanha Oriental tentaram chegar à Alemanha Ocidental, desestabilizando com sua ação todos os regimes da região.
Para os habitantes dos países comunistas, a Europa era uma palavra mágica, que resumia em si liberdade e opulência. De fato, nunca a Europa Ocidental estivera tão rica, e quase meio século de paz após a Segunda Guerra parecia fazer da metade afortunada do continente a utopia realizada na qual vigorava uma democracia perfeita. Ingressar nesse mundo mágico o quanto antes era, para húngaros, tchecos, poloneses etc., a maneira ideal de se livrarem do legado comunista de opressão e miséria.
A Europa Ocidental, no entanto, aceitou de imediato um único país: a Alemanha Oriental. Os outros primos pobres foram deixados na fila de espera, obrigados a cumprir inumeráveis exigências burocráticas antes de serem aceitos no clube.
No entretempo, os candidatos foram pondo suas respectivas casas em ordem enquanto o clube, com suas economias estagnadas, desemprego crescente e excesso de regulamentação, começou a perder algo de seu encanto.
Durante os dois últimos decênios do sistema soviético, a oposição aos regimes se aglutinou ao redor de dois pólos: um deles, social-democrata e cosmopolita, e o outro, nacionalista e populista. Eram os intelectuais do primeiro desses pólos, gente como o tcheco Vaclav Havel, o polonês Adam Michnik, os húngaros Árpád Göncz e György Konrád, que, considerando-se europeus no sentido amplo, aguardavam a unificação continental com mais entusiasmo.
Nos anos 90, os que pertenciam ao segundo grupo, ressuscitando preocupações do entreguerras, eram geralmente vistos como nostálgicos e anacrônicos, mas não deixavam de exercer certa atração, pois, em países cuja autonomia fora longamente confiscada por uma superpotência, o exercício da soberania nacional se tornara uma experiência da qual a maioria da população não abriria mão facilmente.
A primeira decepção dos intelectuais cosmopolitas com sua Europa idealizada resultou da crise balcânica, seja porque ela eclodiu em parte devido a desentendimentos entre a Alemanha, a França e o Reino Unido, seja porque, conforme as hostilidades se agravavam, essas nações reagiram com uma mescla de impotência e indiferença. Os países recém-saídos da tutela russa puderam logo comprovar que a estabilidade da região dependia, em última instância, da intervenção norte-americana.
Concomitantemente também se revelou que não havia uma só concepção do que deveria ser a Europa, mas pelo menos duas. A primeira, promovida sobretudo pela dupla franco-germânica, era a de uma federação centralizada econômica e politicamente, administrada por uma burocracia transnacional não eleita e dirigida pelo par em questão.
A segunda, mais de acordo com as preferências dos países periféricos da Escandinávia, do Mediterrâneo, além do Reino Unido e da Irlanda, correspondia a uma associação folgada de nações independentes cuja meta era antes a de consolidar uma zona de livre comércio.
Muitos dos intelectuais cosmopolitas e pró-europeus entreouviram na primeira concepção ecos desagradáveis de seu próprio passado recente, da centralização extrema que vigorava na zona sujeita ao Pacto de Varsóvia.
Ser plenamente europeu para esse grupo correspondia à livre circulação de idéias e à consolidação das liberdades há pouco adquiridas, não à substituição de um conjunto de entraves burocráticos por outro.
A segunda crise, talvez decisiva, ocorreu nos meses de negociações onusianas que precederam a invasão do Iraque. Nesse período conturbado comprovou-se que franceses e alemães buscavam, para consolidar seu modelo europeu, valer-se do cimento ideológico do antiamericanismo.
Acontece que os países do leste do continente, que, no decorrer de toda a Guerra Fria, esperaram a vitória dos EUA, não estavam preparados para antagonizar a superpotência cujo triunfo havia sido sua libertação. E, como a aliança de franceses e alemães com os russos tampouco os ajudou a se sentirem mais à vontade, eles acabaram, para a irritação de Chirac e Schröder, apoiando os norte-americanos e formando o núcleo do que Donald Rumsfeld chamou de Nova Europa.
A demora imposta pelos europeus ocidentais a seus primos pobres do leste converteu o que poderia ter sido, digamos, dez anos atrás um grande momento de cicatrização dos traumas do século 20 num anticlímax.
O entusiasmo dos setores mais progressistas, da intelectualidade mais aberta e democrática dos antigos países comunistas, consumiu-se em 15 anos desnecessários de espera.
Mesmo em termos puramente econômicos, os novos cidadãos da União Européia serão, por algum tempo, tratados como de segunda classe, uma vez que é apenas no Reino Unido e na Irlanda que terão imediatamente o direito a trabalhar.
Eles ingressam ademais numa união que, depois da Segunda Guerra, nunca esteve tão dividida. Cada partido tentará conseguir seu apoio mediante uma combinação de incentivos e punições.
Se o futuro é incerto, uma coisa é certa: intelectuais que não cederam aos hierarcas do Kremlin não se dobrarão sem resistência aos tecnocratas de Bruxelas.


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