São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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A EUROPA DOS 25

Para o especialista em identidade ocidental Ralf Dahrendorf, o continente deve reconhecer que, sem os americanos, seria menos livre

Europa não pode ser anti-EUA, diz analista

ENRICO FRANCESCHINI
JEAN-PIERRE LANGELLIER
WALTER OPPENHEIMER
DO "LE MONDE"

Com ornamentos góticos, tetos esculpidos, sofás de couro vermelho e retratos de Henrique 8º e da batalha de Waterloo, a Câmara dos Lordes, instituição da aristocracia britânica, pode parecer um lugar inusitado de onde assistir ao nascimento da Europa dos 25. Não se o observador for Ralf Dahrendorf, sociólogo e cientista político, alemão e britânico, europeu e atlantista, social-democrata e liberal, grande especialista na identidade ocidental.
Nascido em Hamburgo, Dahrendorf ficou conhecido em 1959 como um dos mais promissores sociólogos europeus com a elevação ao status de clássico de sua obra "Class and Class Conflict in the Industrial Society" (classe e conflitos de classes na sociedade industrial). Ele é autor de 30 livros, dos quais alguns foram publicados no Brasil, como "Após 1989" (Paz e Terra), "O Conflito Social Moderno" (Edusp) e "Reflexões sobre a Revolução na Europa" (Jorge Zahar). Seu próximo trabalho, intitulado "The Crisis of Democracy" (a crise da democracia), deve sair em janeiro de 2005.
Residente no Reino Unido, diretor da London School of Economics de 1974 a 1984 e ainda deputado alemão e depois membro da Comissão Européia, Dahrendorf recebeu um título de nobreza em 1982 e, desde 1993, ocupa uma cadeira na Câmara dos Lordes.
De terno cinza listrado, óculos grossos e bom humor, lorde Dahrendorf recebe seus visitantes numa sala do Parlamento de Westminster.
Ontem, a União Européia passou a ter 25 membros e ele completou 75 anos de idade. Leia a seguir trechos de sua entrevista.

 

Pergunta - A União Européia passou a ter 25 membros no dia em que o sr. completou 75 anos. Como o sr. se sente a esse respeito?
Ralf Dahrendorf-
Fico muito feliz. Pela primeira vez na história o continente está unido em sua totalidade, com algumas poucas exceções. É verdade que ainda resta muito a fazer, que a União Européia tem muitos desafios a enfrentar. Mas estou feliz e orgulhoso de poder viver esse momento.

Pergunta - Com a queda do Muro de Berlim, há 15 anos, o senhor tentou, em um de seus livros ["Reflexões sobre a Revolução na Europa"], imaginar o futuro da Europa livre da divisão entre leste e oeste. Suas esperanças se concretizaram?
Dahrendorf-
No conjunto, sim. Algumas de minhas previsões mais otimistas chegaram a ser superadas. Em 1989, eu achava que a Europa do leste iria atravessar um "vale de lágrimas" antes de encontrar a democracia e unir-se ao resto do continente. Eu temia que a nostalgia do passado totalitário e estatista voltasse a imperar, após o entusiasmo inicial. Aparentemente, isso não aconteceu. E 15 anos não são nada. A integração tem sido extremamente rápida.

Pergunta - Rápida demais?
Dahrendorf-
Talvez não tenha havido debate suficiente. Bruxelas ditou suas regras e seus prazos, e os países do leste tiveram de se adaptar a eles, sem ter tempo suficiente para digerir sua transformação. A Europa ex-comunista foi obrigada, por assim dizer, a se democratizar, a adotar uma economia de mercado. Mas foi uma obrigação que ela desejou.

Pergunta - Não corremos o risco de ver duas Europas distintas? A velha e a nova, para fazer uso dos termos empregados pelo secretário da Defesa americano, Donald Rumsfeld.
Dahrendorf-
É possível. Mas sempre houve e sempre haverá vários tipos de Europa dentro do continente: a Europa do Mediterrâneo, a Europa do Báltico, a do Norte e a do Sul. É inteiramente lógico, e não há nada de mau nisso. Seja como for, a Europa dos 25 enriquece e completa a União. A ampliação é uma virada histórica que não deve parar por aí.

Pergunta - Onde pararão as fronteiras da Europa?
Dahrendorf-
Não existe resposta definitiva. Uma fronteira pode mudar, pode evoluir. Ela depende de diversos fatores. Por enquanto, a União Européia tem três problemas relativos a suas fronteiras. Para começar, a Turquia. Em seguida, a Suíça e a Noruega, em relação às quais é preciso agir com generosidade, e não com agressividade. Em todo caso, a questão de sua entrada na união precisa ser tratada. Por fim, os Bálcãs: a Romênia, a Bulgária, os países da ex-Iugoslávia. Esse será o problema mais complexo, pois a democracia é mais frágil nessa região.

Pergunta - O sr. é favorável à entrada da Turquia, que para alguns é mais asiático do que europeu, um país muçulmano que entraria em uma Europa cristã?
Dahrendorf-
Sim. A Turquia quer fazer parte da Europa. Ela certamente é mais voltada à Europa do que à Ásia. Concretamente, ela já faz parte da Europa, com seus milhões de emigrantes espalhados pelo continente e a parte turca de Chipre. A questão crucial é o Estado de Direito, a separação nítida entre o Estado e o islã.

Pergunta - Se a Turquia pode entrar na UE, por que não a Ucrânia?
Dahrendorf-
A Ucrânia são dois países em um só. É difícil distinguir o oeste da Ucrânia do leste da Polônia. Eventualmente, eu seria a favor da entrada da Ucrânia. Mas estamos falando de um futuro ainda distante e de avanços consideráveis que a Ucrânia tem de fazer para chegar lá.

Pergunta - E a Rússia?
Dahrendorf-
É uma pergunta distante demais no tempo para ser realista. Moscou não me parece estar com muita pressa para solicitar sua entrada na UE.

Pergunta - No Ocidente, as direitas levantam o espectro de uma invasão de imigrantes vindos dos novos países da UE. Isso o preocupa?
Dahrendorf-
É inevitável que chegue uma onda de trabalhadores do leste. Mas não será nada comparável às grandes migrações do passado, como a da Europa em direção aos EUA. Será uma migração temporária, determinada a retornar a seu país de origem.

Pergunta - O que o sr. acha da decisão de se fixarem limites à entrada dos trabalhadores dos dez países novos nos outros países da UE?
Dahrendorf-
É uma medida profundamente injusta, que, felizmente, não durará para sempre.

Pergunta - Que identidade tem hoje a Europa dos 25?
Dahrendorf-
Não existe resposta fácil para essa pergunta. A União Européia poderia representar um modelo de cooperação entre países caracterizados pelo Estado de Direito e a economia de mercado, essa seria uma definição importante. O maior perigo é que a Europa acabe por se definir como um bloco que se opõe aos EUA. Essa seria uma idéia negativa, funesta. A Europa precisa compreender que os EUA são seus parceiros, seus aliados, um país irmão com o qual ela forma o mundo livre. E que, sem os EUA, ela certamente seria menos livre.

Pergunta - Mesmo sem a América de George W. Bush, que invadiu o Iraque com base em mentiras?
Dahrendorf-
A discussão sobre a Guerra do Iraque é tão grande nos EUA quanto na Europa. É um erro reduzir os EUA a seu presidente ou a seu governo atual. Dito isso, continuo a ser favorável à intervenção no Iraque, por razões pessoais. Saddam Hussein possuiu armas de destruição em massa no passado e já as utilizou. Talvez ele não as tivesse mais em 2003. Mas se, em vez de fechar os olhos, os aliados optassem por intervir contra Hitler em 1938, teria sido possível evitar o Holocausto.

Pergunta - Voltemos à identidade da Europa. A Constituição poderá lhe fornecer uma?
Dahrendorf-
Não vejo a Constituição como um documento particularmente criador e rejeito a idéia de que a Europa dos 25 só possa funcionar com uma Constituição. Seja como for, não estou entre aqueles, no Reino Unido, que vêem na Carta européia uma redução da soberania nacional.

Pergunta - O premiê britânico, Tony Blair, decidiu promover um referendo sobre a Constituição européia. Até agora, as pesquisas de opinião indicam que a maioria dos britânicos rejeitaria a Carta.
Dahrendorf-
Isso não me surpreende. A propaganda e a informação equivocadas lhes deram uma idéia totalmente falsa da Constituição européia.
Michael Howard, o líder dos conservadores, diz, por exemplo, que, se a Constituição for adotada, será o "presidente dos Estados Unidos da Europa" que será convidado à Casa Branca, e não o premiê britânico. Infelizmente, o número de pessoas no Reino Unido que crê em tais bobagens é grande. O debate provocado por um referendo poderia lançar luz sobre o tema.

Pergunta - O sr. não via o euro com muito entusiasmo.
Dahrendorf-
Não, mas tampouco era totalmente contra ele. Continuo a achar que Blair deixou passar uma grande oportunidade. Ele deveria ter proposto um referendo sobre o euro em sua eleição, em 1997, aproveitando a onda de entusiasmo, confiança e renovação com sua vitória. Hoje a situação é muito mais difícil.

Pergunta - O referendo sobre a Constituição vai coincidir com o trigésimo aniversário do referendo de 1975, sobre a entrada do Reino Unido no Mercado Comum Europeu. É possível que o Reino Unido ainda não esteja decidido a integrar a Europa plenamente?
Dahrendorf-
Ainda há diferenças profundas entre o país e a Europa continental. Há diferenças institucionais. Basta pensar na Câmara dos Lordes, onde ocupo uma cadeira. Também são diferenças de mentalidade.
Não é por acaso que os ingleses chamam o oceano Atlântico de "o laguinho". Muitos deles se sentem mais próximos dos EUA do que da Europa, da qual, entretanto, estão separados apenas pelo canal da Mancha. É verdade que as diferenças estão diminuindo aos poucos, e é provável que as gerações jovens as sintam menos. Por enquanto, porém, continuamos a ser diferentes.


Tradução de Clara Allain .


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