São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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CONSUMO

Meninas chegam a viajar horas para visitar loja nova-iorquina

Paparicadas, bonecas dão vazão a sonho americano

RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK

Em tempos politicamente corretos, a vida glamourosa de Barbie, com passeios em conversíveis ao lado de Ken, já era. O que desperta entusiasmo é o dia-a-dia de Samantha: órfã de pai e mãe, vive com a avó no início do século 20, período particularmente difícil para meninas de nove anos.
"Naquela época, você tinha de ter boas maneiras e falar baixo", explica Wayne Walters, funcionário da loja de bonecas American Girl Place, que, desde novembro passado, quando abriu seus três andares num dos endereços mais caros do planeta (Quinta avenida, Nova York), leva garotas de todas as idades a fazerem fila na porta.
Uma vez lá dentro, podem comprar Samantha, com seus 50 cm de altura, por US$ 90, arrumar seu cabelo -trancinhas simples, US$ 10-, curar um braço ou uma perna amputada -de US$ 12 a US$ 20-, e levá-la para almoçar ou tomar um chá -grátis para a boneca, que se senta à mesa, e US$ 20 por cabeça para a família.
Mas esse é um país livre, e a jovem consumidora tem outras opções além de Samantha. Josefina, por exemplo, perdeu a mãe, e hoje, em 1824, vive com seu pai violinista num rancho onde virá a ser o Estado do Novo México.
"São histórias divertidas, mas também tristes", declara Walters, 27. "Acho que elas devem refletir a vida, e a vida não é divertida. É agridoce, há sempre um elemento de tristeza, superação, perseverança", diz, declarando que é isso que unifica, numa espécie de espírito nacional, todas as "garotas americanas" da loja.
Walters diz haver uma identificação das crianças com as bonecas. Kit, uma das mais populares, é loira e não pode receber muitos presentes de aniversário porque sua família foi afetada pela Grande Depressão nos anos 30. "As garotas que compram Kit em geral têm cabelo loiro -ou simplesmente gostam de bonecas loiras."
Ele, negro, no entanto, não considera a afro-americana Addy sua favorita -escrava no sul dos EUA, ela sonha em fugir para o norte não escravagista com os pais. Prefere Samantha, a vitoriana. "Quase fiz faculdade de história e me identifico muito com esse período", explica.


Carolyn diz que pretende fazer o cabelo de sua boneca. No 1º andar, Maddie Piehl, 14, orienta o penteado de Felicity. Sua mãe dirigiu quatro horas para trazer as duas filhas à loja


Identidades
Samantha, segundo ele, é também a boneca preferida pela maioria dos consumidores dessa loja, que tem filial em Chicago. As bonecas são fabricadas desde 1986, quando a marca American Girl foi criada. Só recentemente, no entanto, se tornaram uma mania entre crianças e adolescentes.
Além das bonecas históricas, que vêm com livros no estilo "a vida como ela é" para crianças, há bonecas bebês e bonecas sem nome ou história -mas com livros em branco para as meninas preencherem. Somadas aos acessórios -baús, sapatos, máquinas de fazer sorvete da época colonial-, que Walters vai anunciando, com preço e tudo, enquanto descreve a vida das bonecas, e aos "tratamentos" que podem receber, elas fazem os pais deixarem uma boa soma na loja.
Ron Greensfield, 42, trouxe Jaqueline, 10, para passar algumas horas lá. Consultor financeiro, ele mora em Nova Jersey e trabalha em Nova York. Questionado sobre quanto esperava gastar, sussurra para a filha não ouvir: US$ 250. Pretende almoçar? "Acho que não", diz. Ao ouvir a pergunta, Jaqueline pede com voz de choro: "Vamos, pai?". "Agora acho que vamos", emenda Greensfield.

Almoço
No restaurante com capacidade para 161 pessoas, há reservas feitas até setembro. "É altamente recomendável ligar antes. Nos finais de semana, é impossível [sem reserva]", diz Nataly Tejerina, 20, uma das gerentes.
Mary Meyer e Candy Schachat dirigiram uma hora e meia desde Glen Ridge, cidade do Estado vizinho de Nova Jersey, para trazerem as filhas, Carolyn, 10, e Saly, 10, para almoçar. Suas bonecas estão sentadas à mesa, em pequeninas cadeiras de pernas compridas, com xícaras de chá à frente.
"Você pode encher a xícara e dar para ela", diz Saly.
Carolyn diz que pretende fazer o cabelo de sua boneca. No primeiro andar, Maddie Piehl, 14, orienta o penteado de Felicity, que tem olhos verdes, é ruiva e vive no período da independência americana.
Sua mãe, Jeana, dirigiu quatro horas desde o Estado de New Hampshire para trazer as duas filhas à loja. "A viagem foi para virmos aqui. Chegamos ontem e voltamos amanhã."
Na cadeira de cabeleireiro, com uma toalha, Felicity recebe o penteado da moda, um rabo de cavalo entrelaçado que custa US$ 20, preço de um corte em regiões caras de Nova York.
Ao lado do salão, há livros com histórias contadas por garotas americanas de verdade, que enfrentam dificuldades parecidas com as de Samantha ou Addy.
Um deles, intitulado "Histórias Verdadeiras de Coragem e Emoção", traz cartas escritas para outro produto da empresa, a revista "American Girl". Divididas em capítulos como "Desastres", "Amigos", "Resgates", "Heróis" e "Obstáculos", trazem o seguinte texto de apresentação: "Querida leitora, por anos, meninas têm amado as Histórias Verdadeiras publicadas na "American Girl Magazine". São histórias que vão fazer você rir -e às vezes chorar".

Hospital
Mas não há motivo para preocupação. Se uma dessas histórias verdadeiras vier a acontecer com uma das bonecas da loja, elas podem ser tratadas no hospital local.
Caso Kit ou Josefina percam a cabeça, elas podem ganhar uma nova por US$ 38. Já a perda de um braço, mais comum, é resolvida pela bagatela de US$ 20.
O catálogo da loja anuncia que seus "médicos" são especialmente treinados para tratar todo tipo de boneca. Na saída, elas ganham um certificado de boa saúde, um avental do hospital e um balão de "melhoras". O tempo médio de "recuperação" é de duas semanas.
Atrás do balcão, a plantonista Jocelyn Costelo, de avental branco, diz que doenças não tão "verdadeiras" também são tratadas. "Se uma menina disser que sua boneca está resfriada, vamos fingir com ela, manter a boneca por algum tempo conosco e depois dizer à criança que ela sarou."


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