São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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Patrulha muda eleição na divisa com EUA

População que há décadas cruzava a fronteira a pé, a cavalo ou de carro agora terá de atravessar pontes oficiais para votar

Modificação é reflexo de políticas adotadas pelos EUA após o 11 de Setembro, com o objetivo de impedir a passagem de terroristas

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A REDFORD (TEXAS)

Nessa curva de terra, em que alguns espanhóis resolveram aproveitar uma aldeia de apaches e fazer um povoado no século 17, o que divide dois países é um córrego barrento, de cinco metros de largura, mais ou menos, e água no joelho de profundidade. No lado de lá, o Estado mexicano de Chihuahua, ele é chamado de Bravo. No lado de cá, o texano, é chamado de Grande. "Pois o rio não é Bravo nem Grande", ensina Enrique Madrid, acadêmico que estuda o território há décadas. "Nem mesmo fronteira, por mais que "eles" insistam."
E "eles" insistem. Pela primeira vez numa eleição presidencial mexicana, as populações ribeirinhas dessa região e ao longo de toda a fronteira do Texas não poderão fazer o que vinham fazendo havia décadas: atravessar o rio a pé, de canoa, a cavalo ou de carro para votar do lado de lá e voltar para casa no final do dia. Em vez disso, terão de cruzar pontes oficiais, controladas pela Patrulha da Fronteira. É uma população de pelo menos dois milhões de pessoas, dos dois lados. E quem atravessar corre o risco de não voltar.
"Nós fizemos isso por décadas, e antes de nós nossos antepassados fizeram por milênios", disse à Folha Enrique Madrid, famoso no Estado por ser filho de Lucia Rede Madrid, morta em janeiro, que nos anos 80 criou em sua quitanda uma biblioteca improvisada, a única da região até hoje, ganhou a primeira página dos jornais do país, doações do mundo inteiro e duas medalhas do presidente Bush, o primeiro.
"Não há um habitante daqui que não tenha um parente próximo do lado de lá", contabiliza Enrique. O lado de lá é a cidade mexicana de Mulato. Todos, sem exceção, foram afetados por uma canetada da Casa Branca dada meses após o 11 de Setembro, que só "pegou" mesmo em Redford há cerca de três anos. Pela medida, ficam proibidas as travessias de classe B (as que vinham sendo feitas por todos) e só permitidas as de classe A (as que passam pelas pontes oficiais e vigiadas).
A medida foi afetando cidadezinha após cidadezinha a leste e a oeste de Presídio, a maior da região, com seis mil habitantes, de onde sai a ponte que vai dar em Ojinaga, no lado mexicano. Em poucas semanas, caminhões da Patrulha da Fronteira com pedras foram despejados em caminhos e rotas de pedestres que existiam há centenas e centenas de anos.
Armadilhas foram jogadas ao longo dos rios. Operadores de "chalupas" (pequenos barcos), rapazes que ganhavam alguns pesos para atravessar pessoas daqui para lá, foram presos e respondem a processos abertos com base no Patriot Act, a lei antiterror.
A justificativa é que as fronteiras porosas dessa região do Texas abririam flancos para que membros da Al Qaeda entrassem no país. "Em todo o tempo em que estou aqui, não houve um só caso de alguém que tenha sido preso por esse motivo, nem mesmo suspeitas", disse à Folha o pastor anglicano Melvin Walker La Follette, que cuidou da vida espiritual da comunidade nas duas últimas décadas, até se aposentar, recentemente.
Seus cálculos batem. Segundo números oficiais da seção de Marfa da Patrulha da Fronteira, que cuida de 750 km de divisa, no ano fiscal que terminou em abril 33 pessoas foram presas entrando ilegalmente no país por aqui, a maior parte acusada de trabalhar como "mula" para traficantes mexicanos. Quatro morreram no calor do deserto, que pode passar fácil os 50C no auge do verão -eram imigrantes ilegais.
"Mas nossa principal preocupação é mesmo o terrorismo", diz Bill Brooks, porta-voz da Patrulha da Fronteira em Marfa.
Nem todos os habitantes de Redford seguem tão religiosamente a lei, porém. A reportagem da Folha foi levada a um caminhozinho muito freqüentado pelos locais, que sai de trás de um conjunto de casas-traileres, a parte paupérrima de uma cidade pobre. A entrada estava bloqueada por pedras pela enésima vez. Atrás da barreira, sai uma trilha que vai dar no rio Grande. Na mesma altura do lado mexicano, emerge das águas outra trilha. Dos dois lados, pegadas frescas denunciam o movimento. Hoje, o tráfego promete ser intenso.


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