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ENTREVISTA
GIOVANNI ARRIGHI
COM O FIM do "século americano", o mundo
está diante da possibilidade de uma igualdade maior entre os países do Ocidente e
do Oriente, do Norte e do Sul, afirma o sociólogo e economista italiano Giovanni Arrighi, professor da Universidade Johns Hopkins (EUA), em entrevista à Folha. Arrighi está lançando em sete línguas "Adam Smith em Pequim" -a edição brasileira do livro será publicada na primeira semana de novembro, pela editora Boitempo.
Vivemos a oportunidade de igualdade maior entre nações
Para sociólogo, crise da hegemonia americana sinaliza mundo menos hierárquico
CLAUDIA ANTUNES
EDITORA DE MUNDO
FOLHA - O "longo século 20" de
que o senhor fala, o século americano, chegou ao fim?
GIOVANNI ARRIGHI - Esta é uma
das teses de "Adam Smith em
Pequim", a de que o fracasso do
neoconservador Projeto para o
Novo Século Americano no Iraque marca o fim da hegemonia
americana. Os Estados Unidos
ainda são dominantes, econômica, militar e politicamente.
Mas é uma dominação sem hegemonia, no sentido de que hegemonia não é apenas dominação pura, mas também a capacidade de fazer os outros acreditarem que você age no interesse geral.
FOLHA - Os conservadores americanos, e não só eles, dizem que a hegemonia americana não corre risco porque nenhum outro país é capaz
de atrair aliados e convencê-los de
que agem pelo bem comum...
ARRIGHI - Quando dizem que
não há nenhum outro país que
possa ser hegemônico, isso pode ser verdade. Mas não significa que os EUA ainda sejam. Foi
uma constante dos últimos 30
anos que países e povos tenham confundido a fraqueza
dos outros com a sua força. Nos
anos 1970, a União Soviética
confundiu a fraqueza dos EUA
com sua própria força, invadiu
o Afeganistão e acabou entrando em colapso. Os EUA cometeram o mesmo erro quando
não tinham rivais à vista. Invadiram o Iraque, estão atolados
lá e os países que estão se beneficiando são, regionalmente, o
Irã, mas, globalmente, a China.
A China está emergindo como a verdadeira vencedora da
guerra ao terror. Entretanto,
isso não significa que a China
esteja para se tornar hegemônica, ou que a próxima situação
vá implicar a hegemonia de um
país em particular. O que podemos observar é uma situação
em que há uma igualdade
maior entre as nações.
Isso pode resultar em caos,
mas ao mesmo tempo pode
criar uma situação de maior
equilíbrio de status e poder entre os países. Eu vejo não apenas a China, mas todo o Sul
com boa chance de equalizar as
relações de poder.
O ponto é que os EUA estão
em apuros porque, financeiramente, são dependentes do
Leste da Ásia e também aumentou sua dependência do
Sul em geral. Ao mesmo tempo,
sua credibilidade militar foi
mais corroída do que depois do
Vietnã.
FOLHA - Este seria um novo sistema mundial, diferente do atual? Por
antecedentes históricos, é possível
dizer se ele duraria?
ARRIGHI - Seria uma transformação fundamental das relações internacionais como as conhecemos nos últimos 500 anos. Mas é uma potencialidade, não significa que vamos vê-la se materializar. Dependerá
do que as pessoas fizerem. Como sabemos, a estupidez não é
um monopólio americano.
FOLHA - O senhor costuma falar de
caos, em contraste com a "anarquia
organizada" por um poder hegemônico. Mas, pelo senso comum, onde
vemos caos agora é onde os EUA estão -Iraque, Somália...
ARRIGHI - São duas coisas diferentes. Você pode ter um mundo sem a hegemonia de um Estado particular sem ter caos.
Um mundo que não seja hierárquico não é necessariamente
caótico. O caos é um dos resultados possíveis. Os EUA, de um
Estado hegemônico que criava
ordem, se tornaram uma força
do caos e da desordem -e são
mais e mais percebidos por outros como um agente de caos.
FOLHA - Mas nos anos 1960 e 1970
também havia guerras nas fronteiras dos impérios americano e soviético. Qual a diferença agora?
ARRIGHI - Já no "Longo Século
20" eu fazia uma distinção entre o que chamava de "crise sinalizadora" da hegemonia e
"crise terminal".
Crise sinalizadora foi a dos
anos 1970, um sinal de que a hegemonia americana estava com
problemas. Aí veio a contra-revolução neoliberal dos anos
1980, os EUA reemergiram numa espécie de Belle Époque. O
que vemos agora, na minha opinião, é uma crise terminal. Eles
pensaram que poderiam transformar a Belle Époque numa
hegemonia de longo prazo e isso fracassou, o que aprofundou
as contradições da dependência financeira americana do exterior. Posso estar errado, mas
minha avaliação é que a combinação do desastre iraquiano e
do aprofundamento da dependência americana das finanças
do Sul em geral está trazendo a
hegemonia ao fim.
É uma situação diferente da
dos anos 1970. Eles não podem
repetir o que [o presidente Ronald] Reagan fez. Os EUA eram
uma nação credora e agora são
o maior devedor da história
mundial. Para o Sul, é uma boa
oportunidade para uma nova
Bandung [cúpula em 1955, na
Indonésia, durante a Guerra
Fria, que marcou a criação do
Movimento dos Países Não-Alinhados], só que baseada não
mais na vontade política, mas
em laços econômicos reais.
FOLHA - Mas, se houver desaquecimento ou recessão nos EUA, os países emergentes sofrerão...
ARRIGHI - Depende do que esses países fizerem. Pode ser
uma excelente oportunidade,
principalmente para a China,
de reorientar seu superávit para o desenvolvimento nacional
e a criação de um mercado interno, o que eles já estão fazendo. Eles podem ter uma crise, e
ela pode ser mais séria lá do que
nos velhos centros, mas isso
pode ser bom, se fizerem as coisas certas. Claro que não sabemos se farão...
FOLHA - Há uma bolsa de apostas
entre sinólogos. Alguns acreditam
que, com o crescimento da classe
média, a China se tornará uma democracia. Outros que ela vai se dissolver antes disso, por suas contradições internas. Qual a sua opinião?
ARRIGHI - A idéia de "Adam
Smith em Pequim" é que a China tinha uma longa tradição de
mercado até o século 18, início
do 19, e que eles utilizam agora
essa tradição, assim como a tradição revolucionária. Algo está
emergindo na China que não
tem paralelo. Eles provavelmente vão inventar algo novo,
que as velhas categorias não são
capazes de abarcar.
Mas, de novo, há resultados
diferentes possíveis. Eu não
acredito que a China vá se desintegrar, embora possa passar
por crises. É preciso olhar a situação da China entendendo
que eles vieram de uma história
diferente. A China tem uma
longa história de economia de
mercado não-capitalista.
FOLHA - O senhor pode desenvolver essa idéia?
ARRIGHI - A China foi durante
séculos a mais desenvolvida
economia de mercado, mas não
era capitalista, no sentido de
que capitalistas não estavam no
comando do Estado, como estavam nas cidades-Estado italianas, na Holanda, no Reino
Unido, nos EUA, nos vários
centros capitalistas ao longo
dos últimos séculos. Na China
havia capitalistas, mas eles não
controlavam o Estado. Essa separação entre capitalismo e
economia de mercado era uma
idéia do [historiador francês]
Fernand Braudel [1925-1985],
como era de Adam Smith.
Aliás, uma das teorias do livro é que Adam Smith era anticapitalista. Para ele, o mercado
era um instrumento do governo para fazer os capitalistas
competirem, não os trabalhadores. O fato de haver muitos
capitalistas não significa que o
sistema é capitalista. Depende
de se os capitalistas estão competindo e o governo usa isso para o bem comum, ou de se os capitalistas estão no controle.
FOLHA - Smith era um crítico do
mercantilismo, e a China, segundo
muitos, pratica o mercantilismo,
com a acumulação de superávits.
ARRIGHI - Eu não acho que a
China pratique o mercantilismo. Para entrar na OMC (Organização Mundial do Comércio)
a China aceitou regras muito
mais duras do que países com
renda per capita maior. Quanto
à moeda, não é que a moeda
chinesa esteja subvalorizada.
Eles têm um grande superávit
comercial porque são competitivos, mas o superávit não é
maior do que o da Alemanha ou
o do Japão.
O problema é que o dólar
americano está sobrevalorizado. Os EUA querem fazer com a
China o que fizeram com o Japão em 1985 [os acordos Plaza,
que levaram à valorização do
iene], matando a expansão japonesa. Em vez de desvalorizar
o dólar, o que aconteceria se isso dependesse apenas do mercado, os EUA estão tentando
pôr nos ombros da China o
ajuste que deveriam fazer.
FOLHA - Na crise asiática de 1997, o
senhor disse que a crise mais grave
sempre acontecia no novo centro
emergente e não no centro em declínio. Como interpreta a crise de
agora, com o rompimento da bolha
de crédito americana?
ARRIGHI - Há uma série de crises se desenvolvendo, e, em
transições anteriores, o poder
declinante sempre enfrentou
crises, mas nos poderes emergentes elas são mais violentas,
como no Japão, no início dos
anos 1990, e no Leste Asiático,
em 1997. As pessoas pensavam
que era o fim da expansão regional, mas ela continuou, puxada pela China, enquanto os
EUA enfrentam a necessidade
de um grande ajuste.
FOLHA - Há este fantasma de que a
China pode descartar os títulos americanos. É possível?
ARRIGHI - Acho que não vão
descartar, mas vão diversificar,
o que já estão fazendo. O problema, para os EUA, não é que
outros possam descartar os títulos, mas o fato de que, como
numa dependência química,
eles precisam de mais e mais
recursos. É suficiente que não
consigam para enfrentarem
problemas. Não é que a China
precise descartar. Se os EUA
adotarem medidas protecionistas ou discriminatórias, é
possível, embora improvável,
uma reação. Do ponto de vista
do Sul, quanto mais os países da
região usarem seus superávits
para investirem na região, melhor. E aí os Estados Unidos terão que fazer o ajuste.
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