São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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ENTREVISTA

O conservador Niall Ferguson compara o cenário político e econômico atual com o anterior à Primeira Guerra

Historiador vê risco de "desglobalização"

PEDRO DIAS LEITE
DE NOVA YORK

Ahmad al Rubaye/France Presse
Peregrinos muçulmanos xiitas aparecem refletidos em espelhos em pátio de santuário na cidade sagrada de Karbala, sul do Iraque


O mundo, tal como nós conhecemos hoje, está ameaçado. As condições para uma brusca e trágica "desglobalização" estão todas colocadas. A economia americana depende perigosamente do capital estrangeiro, e um pequeno incidente político ou militar pode tomar grandes proporções, que varreriam do mapa a globalização dos últimos tempos.
Quem traça o cenário não é nenhum militante antiglobalização, mas Niall Ferguson, 40, conservador professor de história de Harvard que virou o "darling" de parte da direita americana.
Ferguson argumenta que, assim como a "primeira era da globalização" sofreu um violento revés com a Primeira Guerra, hoje, 90 anos depois, o planeta está mais sujeito do que nunca a uma desglobalização, talvez ainda mais violenta que a primeira.
Para o professor, todas as condições que levaram aos eventos de 1914-18 permanecem hoje em dia, com personagens diferentes, mas com o mesmo roteiro: os EUA são o Reino Unido, Osama bin Laden é o novo Lênin (sem o controle de um Estado, ainda), Taiwan representaria a Bélgica (um pequeno país que acaba provocando uma luta entre grandes) e a Coréia do Norte, a Bósnia.
Na entrevista à Folha, por telefone, refuta semelhanças com os argumentos da esquerda antiglobalizante. "Eles são estúpidos."

Folha - Em artigo na "Foreign Affairs", o sr. diz que a globalização está ameaçada e que estamos num cenário muito parecido com o de antes da Primeira Guerra. Por quê?
Niall Ferguson
- No período antes de 1914, havia muitas tendências a que estamos acostumados hoje. A mais óbvia é a globalização econômica. Você pode falar do período de 1880 a 1914 como a primeira era da globalização. Então o primeiro ponto é que já estivemos aqui antes, já experimentamos a globalização, e ela terminou tragicamente, com a eclosão da Primeira Guerra.
Depois de 1914, a integração global sofreu um enorme revés. E a questão é: isso poderia acontecer de novo? No meu texto, eu tento lembrar que a possibilidade de um desastre político levar a uma desglobalização é real. E eu particularmente sugeri a possibilidade de um grande conflito em torno de um pequeno país.

Folha - Como Taiwan?
Ferguson -
É plausível.

Folha - Em seu artigo o sr. parece elencar os problemas econômicos, em especial o déficit americano, como principal motivo para uma crise.
Ferguson
- Um dos meus pontos é que há diferenças entre a nossa era da globalização e a que houve até 1914. A mais importante é que, então, a potência dominante, o Império Britânico, era exportadora. Hoje, os EUA importam. Isso é muito diferente. O potencial para uma crise econômica na nossa era pode ser ainda maior, em um sentido estritamente econômico. Você pode imaginar como um conflito político na Ásia, como em Taiwan ou na Coréia do Norte, poderia ter efeitos econômicos enormes. Hoje, quando você analisa as finanças dos EUA, há déficits em conta corrente, provocados por emprestar, entre outros, da China. Então conflitos políticos, digamos em torno de Taiwan, podem afetar muito diretamente a estabilidade econômica, devido a esse déficit.

Folha - Mas a China e os outros países asiáticos também não são muito dependentes dos EUA? Não seria tão ruim para eles, ou até pior, quanto para os EUA?
Ferguson -
As crises militares são ruins para todos. Não era bom para o Reino Unido e para Alemanha ir à guerra em 1914, mas eles foram. Foi desastroso para todas as economias. Isso não é um argumento. É como dizer que, se for ruim para eles, eles não farão. Se fosse assim, nunca haveria guerra.

Folha - Então, se a crise vier, será antes militar que econômica?
Ferguson
- Acho que sim. Um dos meus pontos-chave é que essa relação entre os EUA e a Ásia é instável neste momento. Você tem de se perguntar o que pode mudar. E parece ser o choque provocado por um evento inesperado que desestabilize os mercados financeiros. Então pensamos nos eventos de 1914. A crise política da Bósnia e da Bélgica provocou um grande conflito e fechou todos os mercados financeiros ao redor do planeta.
E, do mesmo modo, uma grande crise política hoje poderia ser provocada por um ataque terrorista, afinal de contas a guerra de 1914 começou com um atentado [o assassinato do arquiduque austríaco, Francisco Ferdinando]. Ou poderia ser um conflito na Ásia, não sabemos.

Folha - E essa crise financeira, sozinha, poderia originar uma desglobalização?
Ferguson
- Não necessariamente, porque obviamente há todos os tipos de forças envolvidas. Como em 1914, não foram só os mercados financeiros, havia outras forças além da crise econômica que se revelaram, como o ato terrorista. Aqui, o protecionismo é muito importante. Achamos que os governos resistiriam a pressões protecionistas se houvesse uma crise, mas eu não confiaria nisso.
Toda vez que assisto a Lou Dobbs [um comentarista ultraconservador que tem um programa diário na CNN, às 18h], tenho essa confirmação. É perturbador. Se ele estivesse na Fox, acharia tudo bem, mas na CNN, toda noite, falando sobre os empregos dos americanos, os imigrantes, é exatamente o tipo de sentimento que se revela em meio a uma crise, que poderia quebrar uma integração, desencadear uma desglobalização, restrições ao livre comércio, ao fluxo de capitais. Então poderia haver um retrocesso agora no livre comércio, na livre migração? Sim. Na Europa, isso é discutido o tempo todo.

Folha - Esse argumento da desglobalização é muito usado pela esquerda, só que visto como positivo. Como o senhor, um conservador, vê seu argumento sendo usado pela esquerda?
Ferguson
- Eles são estúpidos. A última vez em que a desglobalização ocorreu foi trágico. As pessoas que se intitulam como antiglobalização basicamente não entendem de economia. É difícil debater com essa gente, eles não entendem as vantagens do livre comércio, não entendem que os países pobres precisam de dinheiro das nações ricas, não entendem o básico, não leram nem "A Riqueza das Nações", de Adam Smith. Então, quando as pessoas dizem "que ótimo seria uma desglobalização", eu respondo: cuidado com o que você deseja, porque você pode receber. Depois de passar por uma Grande Depressão, venha conversar sobre o que você acha da desglobalização.

Folha - E a comparação que o sr. faz de Bin Laden e Lênin, como guerreiros antiglobalização, até que ponto pode ser levada?
Ferguson
- Obviamente, Bin Laden não está no comando de uma grande potência. Se ele estivesse no controle da Arábia Saudita, acho que esse paralelo seria simplesmente perfeito. Então, no momento, ele está como Lênin em 1907, 1908. Os bolcheviques tiveram seu grande primeiro sucesso em 1905. Acho que Bin Laden não teve tanto sucesso no 11 de Setembro, mas a questão é se Bin Laden pode conseguir o que Lênin conseguiu, tomar o poder e fazer uma revolução no Oriente Médio. O meu ponto é que eles são muito mais próximos do que as pessoas se dão conta.

Folha - Hoje em dia há muito mais mecanismos de defesa contra crises do que antes da Primeira Guerra Mundial. Houve o 11 de Setembro, e os mercados não quebraram. Os EUA têm duas guerras em andamento, existem problemas com o Irã, mas as barreiras são muito mais sofisticadas do que há 90 anos. Seu argumento não é um pouco catastrofista?
Ferguson
- Não sou catastrofista, porque digo que existe uma pequena possibilidade de isso acontecer, mas não significa que desastres não aconteçam. O tsunami na Ásia deveria nos lembrar de que eventos de pequena probabilidade ainda assim são desastres quando acontecem.
Então meu argumento não é que vai acontecer amanhã, ou na próxima semana, ou no próximo ano. É só um cenário possível. Gostaria de colocar como 1% a possibilidade de uma desglobalização, mas deve estar mais próximo de 10%. Estar ciente de que catástrofes acontecem não faz de você um catastrofista, faz de você um realista. Pessoas que pensam que isso não vai acontecer só porque inventamos a internet são ingênuas. Nada mudou na estabilidade global em razão da internet, ela poderia ser destruída hoje por um vírus qualquer. Francamente, acho que é só questão de tempo até que a rede toda caia.

Folha - No seu último livro ["Colossus: The Rise and Fall of the American Empire" (colosso: ascensão e queda do império americano)], o sr. falou que os EUA deveriam atuar como um império, porque eles já são um império. Agora o país está agindo como tal. Esse pode ser um dos fatores para evitar uma desglobalização?
Ferguson
- Acho natural que eles entendam a natureza do seu poder imperial, mas como os britânicos descobriram em 1914, você pode ter maior império do mundo, sem conseguir impedir um rival de começar um problema militar. Acho que não devemos exagerar no que os EUA podem conseguir como um império. Seus limites são muito reais. O sucesso da política externa americana agora no Oriente Médio pode desmoronar muito rapidamente. Não há uma base sólida.


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