São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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Papado de 27 anos mudou relação entre igreja e mídia

HENRI TINCQ
DO "LE MONDE"

Nos últimos dois meses até sua morte, ontem, o mundo esteve saturado de informações sobre a saúde do papa, suas hospitalizações, suas aparições na janela do Vaticano. Ninguém mais ignora os episódios de sua doença nem sua máscara de sofrimento. Seu rosto é examinado com atenção, dissecado pelas teleobjetivas. Câmeras e computadores não lhe deram descanso. Cada etapa do combate que ele travou contra a doença soou como os minutos de uma contagem regressiva.
O pior é que cada aparição de João Paulo 2º para tentar quebrar esse ciclo infernal e tranqüilizar seus féis, para mostrar que o homem que sofria sentia as dores de um mundo doente e violento -era esse o sentido da última mensagem pascal, que passou desapercebido-, se voltou contra ele.
O papa, cujas realizações e cuja determinação patética são elogiadas por todos, se tornou vítima de uma política de comunicação demente. Uma política que data de mais de um quarto de século e que tentou fazer desse ator nato, carismático até não mais poder, homem de teatro desde sua juventude, o "pastor" universal do planeta, a boa consciência de um mundo imoral.
Deixemos o mito de lado. Essa mediatização extrema não foi concebida por alguns prelados megalomaníacos. Mas nada foi feito no Vaticano diante da excepcional popularidade desse homem, indômito enganador da morte (um atentado, doenças, sete internações hospitalares), para tentar frear essa corrida infernal de globalização da imagem do papa, com suas vantagens e as impressões ambivalentes criadas nos dias de hoje.
Desde o início de seu pontificado, não faltaram questionamentos sobre a organização teatral e o custo das viagens de João Paulo 2º, seu impacto real, os riscos de aparente aproximação com políticos locais (por exemplo, o aperto de mão com o ex-ditador Pinochet em Santiago, em 1987).
Mas também a confusão em torno da função de um papa que, para os protestantes e para os ortodoxos (e até mesmo para a teologia católica tradicional), não passa de bispo de Roma -o primeiro dos bispos, sim, mas não Deus sobre a terra. Esses questionamentos foram sendo desprezados, um a um, pela hierarquia católica, surpresa com o interesse do mundo e contrariando os espíritos céticos.
O efeito bumerangue se torna evidente hoje. É verdade que a imagem do papa "atleta de Deus" e o enunciado tranqüilo de suas certezas contribuíram para a valorização da identidade católica, para a difusão da mensagem da Igreja Católica, em grau que, um quarto de século atrás, ninguém teria podido imaginar.
Sobretudo após as instabilidades que se seguiram ao Concílio Vaticano 2º (1962-1965) e que dificultaram o pontificado de Paulo 6º (1963-1978), papa escrupuloso e atormentado.
O desempenho da Igreja não se reduz ao relatório numérico de uma empresa, mas, em sua edição da Páscoa, o semanário alemão "Der Spiegel" estimou que a população católica, sob o papado de João Paulo 2º, passou de 750 milhões para 1 bilhão de pessoas em todo o mundo.

Inversão simbólica
Do mesmo modo, admite-se a idéia de que Karol Wojtyla, condenado à condição de enfermo, à afasia, aceitando mostrar seus limites físicos e seu sofrimento, conferiu outro sentido à sua missão, um sentido que é evidente para todos exceto para aqueles que o pressionavam para retirar-se de cena: uma espécie de proximidade com os doentes, os deficientes e aqueles que agonizam. Em outras palavras, uma inversão simbólica da hierarquia de um mundo no qual só são contados os famosos, os atletas, as modelos, os empresários, os critérios da estética, do lucro e do poder.
Mas essa supremacia da imagem tem seus inconvenientes que são igualmente cegantes nessa fase derradeira de um reino excepcional.
Assim como a árvore oculta a floresta, a comunicação de João Paulo 2º, tanto a dos anos de plena expansão quanto a dos anos da decadência física, deixou à sombra a própria natureza constitutiva da igreja.
O papel das igrejas locais, a vitalidade própria das comunidades católicas, maior ou menor segundo os países e os continentes, tudo isso passou para o segundo plano. As câmeras ficaram sempre voltadas para Roma, deixando de mostrar as comemorações e as peregrinações da Semana Santa em todo o mundo.
A cúpula da Igreja Católica concorda, em grande medida, com esse diagnóstico. Diante da longa agonia televisionada de João Paulo 2º, muitos observadores e cardeais se questionam sobre os limites de uma comunicação concebida pelo grupo que cerca o papa, e com a concordância dele.
Órgãos de imprensa que, em tempos normais, não prestavam nenhuma atenção à vida institucional da Igreja Católica e que, normalmente, não divulgavam suas mensagens, com a doença do papa passaram a observar a vida do Vaticano de perto, dando ouvidos a rumores e especulando sobre o que poderia estar sendo tramado nos bastidores.

Escolha da igreja
Deixada de fora dos circuitos de informação oficial do Vaticano, a mídia passou a dedicar colunas inteiras ao suposto "vazio de poder", às intrigas entre cardeais à sombra do papa, aos possíveis cenários de demissão, à suposta guerra da sucessão.
E o ardor com que o fizeram chama ainda mais a atenção quando se considera que, durante décadas, elas ignoraram o catolicismo ou mesmo foram irônicos sobre seu desaparecimento.
O que estará em jogo no próximo conclave será a escolha entre levar adiante esse magistério mundial, com outro homem providencial, ou o retorno a um papado mais modesto.


Tradução de Clara Allain

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