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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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RECONSTRUÇÃO

Cerca de 20 meses depois da queda do Taleban, país ainda enfrenta graves problemas; reestruturação patina

Afeganistão é mau presságio para Iraque

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Em uma época em que a reconstrução do Iraque preocupa a comunidade internacional, os EUA não deverão olhar para o Afeganistão em busca inspiração: embora tenha melhorado em relação ao que era na época do Taleban, o país permanece pobre e controlado por chefes locais ou regionais.
Segundo analistas ouvidos pela Folha, há inúmeras razões para o Afeganistão continuar em situação precária. Contudo a principal é uma diferença crucial nos objetivos dos dois processos de reconstrução. Por conta de interesses geopolíticos, o Iraque vive sob o controle de uma força de ocupação, enquanto o Afeganistão possui um governo próprio -apoiado por forças internacionais.
"Os EUA, que, na prática, comandam os dois processos, jamais tiveram as mesmas intenções no Afeganistão que têm hoje no Iraque. Quem disse que Washington tinha razões geopolíticas maiores para controlar o Afeganistão errou totalmente. Os militares americanos ainda se encontram em território afegão somente para procurar terroristas, que atuam na região", analisou Olivier Roy, especialista em Afeganistão do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais (Paris).
"Assim, eles não interagem com a população, o que atenua o risco de morte entre os estrangeiros. No Iraque, além de existir um nacionalismo mais agudo que no Afeganistão, as forças da coalizão controlada pelos EUA estão totalmente misturadas com a população, o que constitui um risco bem mais elevado", acrescentou.
Com efeito, desde a queda do regime do Taleban, no final de 2001, a resistência afegã tem sido bem mais fraca do a que existe no território iraquiano. Ademais, as forças estrangeiras que estão no Afeganistão não chegam a 20 mil homens, enquanto só os EUA têm cerca de 150 mil no Iraque.
Como ressaltou Roy, outro fator que abranda a oposição local às forças estrangeiras é a ausência de um forte sentimento nacionalista afegão "porque a sociedade afegã sempre foi mais descentralizada".
"Trata-se de um país que, tradicionalmente, foi comandado por chefes locais ou regionais. Assim, não há um verdadeiro movimento afegão unido", apontou Roy.
Todavia essa aparente vantagem para as forças internacionais se transformou em um dos maiores obstáculos para a estabilização política do país, visto que enfraquece o governo central, liderado pelo presidente Hamid Karzai.
"Os EUA fortaleceram os chefes de guerra afegãos porque precisavam deles para lutar contra o Taleban e continuam a apoiar alguns comandantes militares regionais porque precisam da ajuda deles para caçar o que restou do Taleban e da Al Qaeda [rede terrorista de Osama bin Laden]. Washington continua fornecendo armas a grupos locais, buscando chegar mais perto dos terroristas", explicou Marina Ottaway, do Carnegie Endowment for International Peace (EUA).
"Assim, os EUA minam o governo central afegão. Mas não acredito que isso seja feito deliberadamente para buscar manter a estabilidade. Creio que Washington não queira investir os recursos necessários para enfrentar os chefes de guerra, pois seria necessária uma forte presença militar americana ou internacional no país. Isso seria muito caro financeira e politicamente no momento atual. Afinal, há a reconstrução do Iraque em curso", completou.
A situação atual põe em risco o processo de democratização do Afeganistão. A instabilidade é crescente no país, sobretudo na região situada perto da fronteira com o Paquistão, e já ameaça a realização das eleições, que deverão ocorrer em meados de 2004.

Manutenção da paz
A Força Internacional de Assistência de Segurança (Isaf), uma missão de manutenção da paz apoiada pela ONU, só opera em Cabul -apesar dos constantes apelos feitos por Karzai. Este pede um maior contingente militar e a ampliação do mandato da Isaf, para permitir que o restante do território afegão seja efetivamente controlado por seu governo.
Os EUA se dizem favoráveis à expansão da missão, porém afirmam que outros Estados devem fornecer soldados à força. Enquanto isso, perto da fronteira com o Irã, Ismail Khan "governa" sem levar muito em consideração a administração central. O mesmo ocorre com Abdul Rashid Dostum na região vizinha ao Uzbequistão. Embora, oficialmente, afirmem respeitar a autoridade de Karzai, os dois chefes de guerra mantêm enorme força local.
"Por conta da receita que obtém graças ao comércio, legal ou ilegal, com o Irã, Khan tem um "orçamento" superior ao do governo central", apontou Roy. Assim, o moderado Karzai é visto como "prefeito de Cabul", pois os cerca de 5.000 soldados do Exército afegão não são capazes de enfrentar as forças dos chefes de guerra, que oscilam entre 100 mil e 200 mil homens, segundo especialistas.
Outro fator de desestabilização no país é o crescente cultivo da papoula, que dá origem à heroína. Os afegãos produziram 4.500 toneladas de papoula em 1999, mas sua produção caiu para 185 toneladas em 2001, após uma onda de repressão às drogas liderada pelo Taleban. Todavia, de acordo com estimativas da ONU, o país deverá produzir 3.400 toneladas neste ano, o que equivale a 75% da produção mundial. "As drogas voltaram a ter papel crucial na economia do país", avaliou Ottaway.
Contudo, conforme salientou o brasileiro Manoel de Almeida e Silva, diretor de comunicação da Missão de Assistência da ONU no Afeganistão, a vida da população local já melhorou bastante desde a queda do Taleban. "Já conseguimos realizar campanhas de vacinação, atingindo 6 milhões de crianças, e poderemos erradicar a poliomielite do país em 2004."
"Além disso, as afegãs têm mais liberdade, as meninas frequentam escolas e lugares públicos, e a colheita de trigo deste ano será a maior dos últimos 25 anos graças à recuperação dos canais de irrigação que já fizemos. Também abrimos postos de atendimento para mulheres, que tinham grande dificuldade para obter atendimento médico sob o Taleban."
De fato, seria irresponsável dizer que a atual situação do Afeganistão não é melhor que a existente há alguns anos. Todavia, se os doadores de fundos tivessem mantido suas promessas, as forças internacionais e as ONGs que atuam no país já poderiam ter realizado mais avanços.
Só os EUA prometeram, no início de 2002, doar US$ 3,3 bilhões em cinco anos, porém, segundo o diário "The New York Times", somente cerca de US$ 300 milhões foram gastos com a reconstrução do Afeganistão até agora. Washington deverá desbloquear mais US$ 1 bilhão em breve.
Outros países ou blocos, como o Japão e a União Européia, também ainda não cumpriram suas promessas. Karzai, que pleiteava US$ 10 bilhões em cinco anos, obteve a promessa de poder contar com US$ 4,5 bilhões. O problema é que boa parte desse montante ainda não chegou ou foi gasta em programas humanitários, não na reconstrução do Afeganistão.


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