São Paulo, sábado, 03 de setembro de 2005

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TRAGÉDIA NOS EUA

Moradores de cidade no Mississippi tentam tocar a vida em meio a filas, cadáveres, oportunistas e muita raiva

Na arrasada Biloxi, falta tudo, sobra calor

PEDRO DIAS LEITE
ENVIADO ESPECIAL A BILOXI (MISSISSIPPI)

Às 6h40 de anteontem, pouco depois do fim do toque de recolher, já havia filas enormes em todos os pontos de Biloxi, uma pequena cidade na costa do Mississippi antes conhecida por seus cassinos.
Biloxi está desde segunda-feira de manhã sem água (logo, sem esgoto), sem energia, sem telefone. Os hotéis que continuam de pé estão todos fechados, e as histórias de corpos boiando e de saques violentos tomam conta de todas as conversas. É impossível encontrar um número definitivo, mas todas as autoridades falam em mais de cem mortos na cidade, atingida primeiro pelo furacão Katrina e depois varrida por ondas de até seis metros de altura.
Há espera para tudo. Milhares de carros se enfileiram em postos de gasolina que ainda não abriram em busca de combustível para geradores e para deixar a cidade. Na porta do K-Mart, mais de mil pessoas aguardam a abertura da loja na esperança de obter água e comida, mais de uma hora e meia antes da abertura da loja, às 8h. Em outras lojas, as filas não são menores e os produtos estão racionados. Clientes brigam uns com os outros por causa das quantidades que cada um leva. Os preços estão muito acima do razoável, e a única forma de comprar é com dinheiro vivo. Um gerador, que costuma sair por US$ 500, é vendido por US$ 1.700. Alguns postos vendem meio galão de gasolina por US$ 6. Antes do furacão, custava US$ 2,50.
Além de tudo, faz calor. É muito úmido e muito quente.

Casas sumiram
Uma volta pela costa da cidade mostra o tamanho da destruição. A reportagem da Folha viu ao menos três barcas mais de cem metros terra adentro. Não são pequenas. Sustentam prédios de quatro andares, ainda parcialmente de pé, onde funcionavam os cassinos. Estão a dezenas de metros do mar onde antes flutuavam, que agora está calmo. No rastro, cadeiras, máquinas de caça-níquel, lustres.
As casas que ficavam à beira-mar não existem. Em alguns casos, não é possível nem ver suas fundações, saber o que de fato havia ali. Em alguns terrenos, pequenas escadas da entrada ficaram de pé para levar a lugar nenhum. Num outro ponto, o único sinal de que uma igreja uma vez esteve ali é o sino que restou.
Nos prédios, é visível a altura a que a água chegou. Nos andares mais altos, partes dos telhados e janelas foram arrancadas pela força dos ventos, que chegaram a 200 km/h. Nos primeiros dois, três andares não há nada. Está tudo vazado. É como se houvesse apenas as paredes laterais, a sustentar precariamente os andares superiores, sem que nunca tivessem sido erguidas paredes na frente e atrás. O prefeito chamou a tragédia de "o nosso tsunami".

Ravióli
Na quinta-feira à tarde, o Exército da Salvação distribuía refeições para os refugiados em um terreno baldio. Ali ficava o prédio da organização. Agora só há um trailer. São 2.000 pratos por dia, com ravióli de queijo, ervilhas e pêssego.
"O lugar está totalmente destruído. Agora a única coisa que podemos fazer é tentar alimentar minimamente a população, enquanto a ajuda não chega. Depois que as pessoas milagrosamente conseguiram sair disso vivas, nossa tarefa é dar continuidade à vida", disse o chefe das operações em Biloxi, Don Wielsen. Com mais de 18 anos de trabalho na organização e alguns furacões no currículo, diz que nunca viu nada parecido. "Estamos aqui graças a doações e à solidariedade", diz Lacey Loe, voluntária do Arkansas.
Até o final da semana, a sensação de falta de ajuda federal era uma constante na cidade. Ontem, o presidente George W. Bush fez de Biloxi um dos três pontos de seu tour pela região, para mostrar resposta do governo à tragédia.
"Nunca vi demorarem tanto. A gente já foi atingido de verdade outras vezes, mas nunca tinha me sentido tão impotente", conta Jerry Waine, 71. Ele trabalha no serviço de ajuda às vítimas da cidade, onde morou sua vida inteira, e estava sentado desolado na varanda de sua casa, ainda tomada pela lama, no fim da tarde de quinta-feira.
Como todos os cidadãos mais velhos, seu ponto de referência é o Camille, furacão que arrasou a região em 1969. Matou 146 pessoas na área. "Agora os ventos foram menos fortes, mas a destruição é pior."

"Não use a privada"
Três dias depois da passagem do Katrina, muito pouco parecia ter sido feito. Postes de luz ainda estavam caídos por todos os lados, árvores arrancadas pela raiz ou partidas pelos ventos ainda jaziam no meio das ruas enlameadas. Casas e barcos virados arrastados pelos ventos e pelas águas bloqueavam a passagem, no meio da rua. Em uma, lia-se a pichação: "Devolver à rua Fayard, 446".
O rádio e os jornais locais tentavam dar alguma orientação à população.
"Não use a privada. Mesmo dando a descarga com água, o sistema de esgoto da cidade não suporta, e tudo vai voltar uma hora ou outra com doenças", diz a voz no rádio. No jornal, telefones ficam à disposição para quem quiser colocar os nomes de parentes desaparecidos em listas para serem publicadas. O problema é que nenhum telefone funciona. O celular pega raramente, e em alguns poucos pontos da cidade.
E ninguém quer dirigir até lá, para não gastar gasolina. Um dos poucos lugares em que o serviço funciona é o final de uma ponte completamente destruída, uma das imagens de Biloxi mais transmitidas pelos canais de TV norte-americanos. É como se a ponte tivesse sido fatiada e depois empurrada, como um dominó.


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