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TRAGÉDIA NOS EUA
Moradores de cidade no Mississippi tentam tocar a vida em meio a filas, cadáveres, oportunistas e muita raiva
Na arrasada Biloxi, falta tudo, sobra calor
PEDRO DIAS LEITE
ENVIADO ESPECIAL A BILOXI (MISSISSIPPI)
Às 6h40 de anteontem, pouco
depois do fim do toque de recolher, já havia filas enormes em todos os pontos de Biloxi, uma pequena cidade na costa do Mississippi antes conhecida por seus
cassinos.
Biloxi está desde segunda-feira
de manhã sem água (logo, sem esgoto), sem energia, sem telefone.
Os hotéis que continuam de pé estão todos fechados, e as histórias
de corpos boiando e de saques
violentos tomam conta de todas
as conversas. É impossível encontrar um número definitivo, mas
todas as autoridades falam em
mais de cem mortos na cidade,
atingida primeiro pelo furacão
Katrina e depois varrida por ondas de até seis metros de altura.
Há espera para tudo. Milhares
de carros se enfileiram em postos
de gasolina que ainda não abriram em busca de combustível para geradores e para deixar a cidade. Na porta do K-Mart, mais de
mil pessoas aguardam a abertura
da loja na esperança de obter água
e comida, mais de uma hora e
meia antes da abertura da loja, às
8h. Em outras lojas, as filas não
são menores e os produtos estão
racionados. Clientes brigam uns
com os outros por causa das
quantidades que cada um leva. Os
preços estão muito acima do razoável, e a única forma de comprar é com dinheiro vivo. Um gerador, que costuma sair por US$
500, é vendido por US$ 1.700. Alguns postos vendem meio galão
de gasolina por US$ 6. Antes do
furacão, custava US$ 2,50.
Além de tudo, faz calor. É muito
úmido e muito quente.
Casas sumiram
Uma volta pela costa da cidade
mostra o tamanho da destruição.
A reportagem da Folha viu ao
menos três barcas mais de cem
metros terra adentro. Não são pequenas. Sustentam prédios de
quatro andares, ainda parcialmente de pé, onde funcionavam
os cassinos. Estão a dezenas de
metros do mar onde antes flutuavam, que agora está calmo. No
rastro, cadeiras, máquinas de caça-níquel, lustres.
As casas que ficavam à beira-mar não existem. Em alguns casos, não é possível nem ver suas
fundações, saber o que de fato havia ali. Em alguns terrenos, pequenas escadas da entrada ficaram de pé para levar a lugar nenhum. Num outro ponto, o único
sinal de que uma igreja uma vez
esteve ali é o sino que restou.
Nos prédios, é visível a altura a
que a água chegou. Nos andares
mais altos, partes dos telhados e
janelas foram arrancadas pela força dos ventos, que chegaram a 200
km/h. Nos primeiros dois, três
andares não há nada. Está tudo
vazado. É como se houvesse apenas as paredes laterais, a sustentar
precariamente os andares superiores, sem que nunca tivessem sido erguidas paredes na frente e
atrás. O prefeito chamou a tragédia de "o nosso tsunami".
Ravióli
Na quinta-feira à tarde, o Exército da Salvação distribuía refeições para os refugiados em um
terreno baldio. Ali ficava o prédio
da organização. Agora só há um
trailer. São 2.000 pratos por dia,
com ravióli de queijo, ervilhas e
pêssego.
"O lugar está totalmente destruído. Agora a única coisa que
podemos fazer é tentar alimentar
minimamente a população, enquanto a ajuda não chega. Depois
que as pessoas milagrosamente
conseguiram sair disso vivas, nossa tarefa é dar continuidade à vida", disse o chefe das operações
em Biloxi, Don Wielsen. Com
mais de 18 anos de trabalho na organização e alguns furacões no
currículo, diz que nunca viu nada
parecido. "Estamos aqui graças a
doações e à solidariedade", diz
Lacey Loe, voluntária do Arkansas.
Até o final da semana, a sensação de falta de ajuda federal era
uma constante na cidade. Ontem,
o presidente George W. Bush fez
de Biloxi um dos três pontos de
seu tour pela região, para mostrar
resposta do governo à tragédia.
"Nunca vi demorarem tanto. A
gente já foi atingido de verdade
outras vezes, mas nunca tinha me
sentido tão impotente", conta
Jerry Waine, 71. Ele trabalha no
serviço de ajuda às vítimas da cidade, onde morou sua vida inteira, e estava sentado desolado na
varanda de sua casa, ainda tomada pela lama, no fim da tarde de
quinta-feira.
Como todos os cidadãos mais
velhos, seu ponto de referência é o
Camille, furacão que arrasou a região em 1969. Matou 146 pessoas
na área. "Agora os ventos foram
menos fortes, mas a destruição é
pior."
"Não use a privada"
Três dias depois da passagem
do Katrina, muito pouco parecia
ter sido feito. Postes de luz ainda
estavam caídos por todos os lados, árvores arrancadas pela raiz
ou partidas pelos ventos ainda jaziam no meio das ruas enlameadas. Casas e barcos virados arrastados pelos ventos e pelas águas
bloqueavam a passagem, no meio
da rua. Em uma, lia-se a pichação:
"Devolver à rua Fayard, 446".
O rádio e os jornais locais tentavam dar alguma orientação à população.
"Não use a privada. Mesmo
dando a descarga com água, o sistema de esgoto da cidade não suporta, e tudo vai voltar uma hora
ou outra com doenças", diz a voz
no rádio. No jornal, telefones ficam à disposição para quem quiser colocar os nomes de parentes
desaparecidos em listas para serem publicadas. O problema é
que nenhum telefone funciona. O
celular pega raramente, e em alguns poucos pontos da cidade.
E ninguém quer dirigir até lá,
para não gastar gasolina. Um dos
poucos lugares em que o serviço
funciona é o final de uma ponte
completamente destruída, uma
das imagens de Biloxi mais transmitidas pelos canais de TV norte-americanos. É como se a ponte tivesse sido fatiada e depois empurrada, como um dominó.
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