|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RÚSSIA
Seqüestro em escola matou 335, sendo mais da metade crianças; familiares e sobreviventes falam em dor e saudade
Um ano após cerco, Beslan segue de luto
ANDREW OSBORN
DO "INDEPENDENT"
Ao menos 335 pessoas, mais da
metade delas crianças, morreram
quando terroristas buscando a retirada das forças russas da Tchetchênia tomaram uma escola em
Beslan. Nas ruas da cidade, o "Independent" encontrou os moradores ainda em estado de choque.
RUA PERVOMAISKAYA (1º DE
MAIO) - Essa é uma das ruas mais
compridas de Beslan, correndo
paralela aos limites do que restou
da Escola Nº 1. Foi essa a rua que
sofreu as piores baixas no cerco
da escola, e, entre os que morreram, a maioria era de crianças.
Um ano atrás o "Independent"
entrevistou famílias residentes
nessa rua. Nesta semana, o jornal
voltou para ver a diferença na situação.
Ladeada de cerejeiras, tílias e
outras árvores, a rua parece tranqüila, mas atrás da porta de cada
casa os habitantes ainda se esforçam para entender o que aconteceu com sua cidadezinha.
TRAVESSA ZHUKOV, 7 (UMA PEQUENA TRAVESSA DA RUA PERVOMAISKAYA) -Quem abre a porta é
Ludmila Gapoeva, 64. Seu filho
Ruslan, 34, foi o primeiro morador de Beslan morto no ano passado. Quando ouviu tiros de fuzil
e metralhadora vindos da escola,
ele correu para o local armado
com sua espingarda.
Consta que teria atirado em um
dos seqüestradores, antes de ser
abatido. Quando
estava deitado no
chão, ferido, ele
ergueu a cabeça.
Um atirador pôs
uma bala em sua
cabeça, terminando de matá-lo.
Sua filha Zerassa, 6, foi morta no
último dia do cerco, e sua esposa,
Marina, 35, ficou
gravemente ferida
por estilhaços de
morteiro, mas sobreviveu.
Quando soube
da morte do filho
e da neta, seu pai,
Khariton, 72, sofreu um ataque
cardíaco. Seu filho
Tamerlan, 6, sobreviveu.
Ludmila diz que
a viúva de seu filho não passa de
uma sombra do
que era. "Hoje em
dia ela fala muito
pouco. E foi só há
pouco tempo que
ela recomeçou a
andar."
Ludmila conta que Marina passou quatro meses no hospital e foi
submetida a duas cirurgias. "Antes, ela era professora de economia, mas não vai trabalhar nunca
mais. passa o dia todo em casa."
Quando é mencionado o nome
de sua netinha morta, Ludmila
começa a chorar. Ela conta que
ouviu que o coração e as entranhas da menina foram literalmente arrancados de seu corpo
pela força das explosões. "Você
pode imaginar algo pior do que
isso? Ela queria ser bailarina."
Ludmila conta que tentou esconder a verdade de seu neto, Tamerlan. "Eu disse a ele que seu pai
e sua irmã estavam viajando, mas
iam voltar. Quando lhe contei a
verdade, foi difícil demais. Ele
chorou sem parar. Ainda hoje, ele
fala de sua irmã como se ela estivesse viva."
Khariton, que sobreviveu ao
ataque cardíaco, diz que gostaria
que mais dos moradores de Beslan tivessem tomado em armas
contra os terroristas.
Os avós culpam a diretora da escola pelo que aconteceu. Dizem
que foi a incompetência dela que
permitiu que os terroristas se escondessem e ocultassem suas armas na escola com antecedência.
RUA PERVOMAISKAYA, 105 - No
ano passado, Taimraz Tokaev
não sabia se sua filha Medina, 15,
iria sobreviver. Ela foi internada
num hospital da cidade vizinha de
Rostov com graves ferimentos na
cabeça provocados por estilhaços
de morteiros.
Hoje, porém, ela sorri ao descrever como passou por duas cirurgias e ficou três meses no hospital.
Diz que não se lembra de muita
coisa do seqüestro propriamente
dito. "Quando lembro disso, fico
triste e com medo."
Como a maior parte das crianças e adolescentes de Beslan, Medina não estudou nestes últimos
12 meses. Em vez disso, viajou para a Alemanha e a Turquia em férias recuperativas. "Isso me distraiu por algum tempo", conta.
Embora tenha apenas 16 anos
hoje, seus olhos refletem uma tristeza vulnerável e um autoconhecimento incomum para alguém
de sua idade. Ela diz que, dentro
de um ano, pretende se mudar
com suas amigas para São Petersburgo, para estudar.
Indagada sobre quem ela pensa
ser responsável pelo que aconteceu, a garota responde, com calma, que prefere não falar disso.
Mas explica que não vê problema
em viver em Beslan.
"É claro que me recordo do que
aconteceu todos os dias, mas, se
eu me mudar para outro lugar, terei que recomeçar do zero e fazer
novos amigos."
RUA PERVOMAISKAYA, 106 - Há
um ano, Valentina Khadartseva
não sabia se seu filho Georgy, então com 34 anos, e sua neta Amina, 8, iriam sobreviver. Ambos estavam internados no hospital, em
estado crítico.
Georgy recebeu um tiro na cabeça disparado por um franco-atirador quando, com a ajuda de
binóculos, tentou ver o que se
passava na escola. A lente do binóculo refletiu o
sol, e logo depois
uma bala atravessou sua cabeça,
deixando por
pouco de perfurar
seu cérebro.
Amina se feriu
quando o telhado
do ginásio da escola desabou. Ela
sofreu ferimentos
graves de estilhaços de bomba e
teve o crânio fraturado.
Um ano depois
da tragédia, Valentina, sua avó,
se permite dar um
sorriso. Tanto
Georgy quanto
Amina sobreviveram.
Na verdade,
Georgy, usando
boné de beisebol
para encobrir
suas cicatrizes, estava sentado no
banco do motorista do carro da
família, que ele recentemente reaprendeu a conduzir. Seu braço esquerdo não se move mais e ele
tem uma placa de plástico sobre o
crânio, mas aparentava estar alegre.
O marido de Valentina, Taimuraz, disse que sua família teve sorte. "Comparada com outras famílias, Deus poupou a nossa."
Mas Valentina disse que Amina
ainda está traumatizada. "Ela corre por aí como uma criança normal, mas de vez em quando pára e
diz que sua cabeça está girando.
Além disso, ela se queixa de dores
de cabeça fortes. Por que isso
aconteceu? Ainda não sabemos.
Putin e o governo são tão culpados quanto quaisquer outros."
O simples fato de Georgy estar
vivo é um milagre. Os médicos
que cuidaram dele acharam que
ele iria morrer. Quando perguntamos se ele próprio se surpreende, ele sorri e diz que sim.
Georgy reclama de períodos de
blecaute e de dores de cabeça terríveis, mas diz que está determinado a recuperar-se por completo. "Quero fazer alguma coisa.
Quem sabe meu braço volte ao
normal dentro de dois ou três
anos."
RUA PERVOMAISKAYA, 100 - Um
ano atrás, Chermen, então com 8
anos, não entendia realmente que
sua mãe, Jana, tinha morrido no
cerco da escola. Ele dizia a si mesmo que ela devia estar ocupada
demais na cidade para poder voltar para casa.
Doze meses atrás o garoto chegou a falar livremente sobre como
tinha sido feito refém e depois libertado. Agora, porém, que compreendeu que Jana não voltará
nunca mais, ele parece uma criança diferente.
A morte de sua mãe deixou seu
pai, Atzamas, sozinho para criar
os quatro filhos. Nesta semana,
Chermen estava sentado na cozinha escura de sua casa, brincando
nervosamente com um pedaço de
barbante, cabisbaixo e respondendo às perguntas com monossílabos. Ele conta que viajou para
o Egito e a Bulgária. Diz que gostou mais da Bulgária. Admite que
pensa muito no cerco, mas depois
faz silêncio.
Seu irmão Tamik, 16, tampouco
tem coragem de falar sobre o que
aconteceu. Pede para ser desculpado, e seus olhos se enchem de
lágrimas. A tia dos garotos, Klara,
diz que Chermen não está bem.
"Antigamente ele era um menino
alegre, mas agora ele vive nervoso, cheio de caprichos, desobediente."
Ela acrescenta que Chermen
sempre soube que sua mãe tinha
morrido. "Antes de ser resgatado,
ele viu sua mãe coberta de sangue." Chermen já recebeu atendimento psiquiátrico, mas, segundo
seus familiares, o tratamento não
parece ter ajudado.
RUA PERVOMAISKAYA, 95 - Um
ano atrás, Kazik Godjiev, 12 anos
na época, estava em condição crítica, depois de ser gravemente ferido na cabeça e pescoço por estilhaços de bombas. Os médicos tinham medo de movê-lo de lugar,
temendo causar danos a seu cérebro.
Seu irmão Amran, 16, conta que
Kazik passou cinco meses no hospital e agora está com o pai deles
num resort no sul da Rússia, recuperando-se do trauma. "Seu braço ainda treme quando ele faz
uma xícara de chá, mas, deixando
isso de lado, ele já se recuperou
em 80%", disse o irmão.
Amran afirma que teve mais
sorte do que seu irmão menor.
"Tento não lembrar daquilo e às
vezes acho que já me recuperei
bastante, mas Kazik está pior do
que eu. Ele ainda tem muito o que
superar."
Amran conta que está ansioso
por voltar às aulas, em 5 de setembro, para poder retomar sua vida.
"Preciso estudar. Já estou farto de
passar um ano sem fazer nada."
Mas ele conta que gostou das
viagens que fez à Bulgária, Áustria, Alemanha, Ucrânia e Estônia. "Foi maravilhoso. Pude conhecer o mundo. Mas estou contente em viver aqui, por enquanto. O que aconteceu é uma realidade. Não podemos fugir dela."
O rapaz é um dos poucos que
não guarda rancor, dizendo que
ninguém poderia ter previsto o
que aconteceu. Ele acha que as
pessoas de Beslan que pensam demais na tragédia correm o risco
de perder sua saúde e sua sanidade mental. "Se uma pessoa acha
sua vida parou naquele dia, então
ela já morreu."
Ele não passou muito tempo
com seu irmão Kazik nos últimos
12 meses, mas, mesmo assim, afirma que a tragédia os aproximou.
"Hoje eu cuido mais dele, o amo
mais do que antes."
RUA PERVOMAISKAYA, 94 - No
ano passado, Georgy Torchinov,
11, falou das saudades que sentia
de seus amigos da escola que
morreram no cerco. O tempo passado desde então não parece ter
diminuído sua dor.
"Ainda não me acostumei ao
que aconteceu, ainda penso nisso
todos os dias. Agora ficou chato
aqui. Há poucas crianças com
quem brincar."
Georgy aponta casualmente para um garotinho de camisa listrada. "O irmão desse menino morreu. Ele era meu amigo." Diferentemente de outras crianças, ele
não tem dificuldade em atribuir a
responsabilidade pela tragédia
aos terroristas. "Eles fizeram tudo
por Alá. Todo o mundo os odeia."
RUA PERVOMAISKAYA, 102 - No
ano passado, Taimraz Sidakov,
cujo filho Alan,13, foi um dos reféns na escola, disse que queria
deixar Beslan e enviar seus filhos
para o Reino Unido. Alan sofreu
ferimentos leves quando sua mãe,
Ira, e seus dois irmãos menores
conseguiram fugir da escola antes
de os terroristas consolidarem seu
controle.
Agora, porém, Taimraz, que
trabalha na fábrica de vodca da cidade, diz que desistiu da idéia de
mandar Alan para a Inglaterra
quando descobriu que seu filho
precisaria de alguém que assumisse sua guarda legal. Mesmo
assim, sua esposa, Ira, fala que
gostaria de deixar Beslan. "Cada
vez que passo pela escola, fico
apavorada. Me recordo de tudo."
Os Sidakov dizem que as pessoas mudaram profundamente
em conseqüência do cerco. Aquelas que perderam seus filhos começaram a sentir raiva das que
não os perderam, e as que receberam indenizações menores do governo invejam e odeiam as que foram compensadas mais generosamente.
Ira descreve a situação como insuportável. "Outros pais dizem
que seus filhos morreram e que os
nossos sobreviveram por algum
motivo. Dizem que não é justo.
Falam que seus filhos morreram
para que os nossos pudessem viver. A tensão é grande, mesmo
nesta rua. As pessoas começam a
manter distância umas das outras."
O casal conta que recebeu indenização de cerca de US$ 17 mil, dinheiro que guardou para comprar apartamentos para seus três
filhos. Eles falam em tom prático
sobre como sua relação com a irmã de Taimraz, Rita, deteriorou
em conseqüência da tragédia.
A filha de Rita, Alla, 9, morreu
no cerco, e, desde então, Rita se
tornou membro ativo do Comitê
de Mães de Beslan, que vem travando uma bem-sucedida campanha de relações públicas contra
o Kremlin.
No último ano, Rita visitou os
Sidakov apenas uma vez, e Taimraz não esconde que acha que sua
irmã ficou mentalmente instável,
tanto que bate na cabeça com os
dedos quando se refere a ela.
Quando Taimraz deixa a sala,
Ira conta que está fazendo de tudo
para convencê-lo a vender a casa.
"Ontem estávamos no centro da
cidade, e alguns soldados saltaram de um caminhão. Alan achou
que estava tudo acontecendo de
novo. Tive que acalmá-lo."
E ela diz que Alan se recusa a
usar uniforme escolar outra vez.
""Veja o que aconteceu no ano
passado, quando você me comprou um uniforme" , ele fala. Este
ano eu lhe comprei um jeans preto e uma camisa branca, nada
mais."
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Oriente Médio: Judeus se adaptam à vida pós-retirada Próximo Texto: Terror: Blair busca elo com imigrante muçulmano Índice
|