São Paulo, sábado, 03 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RÚSSIA

Seqüestro em escola matou 335, sendo mais da metade crianças; familiares e sobreviventes falam em dor e saudade

Um ano após cerco, Beslan segue de luto

ANDREW OSBORN
DO "INDEPENDENT"

Ao menos 335 pessoas, mais da metade delas crianças, morreram quando terroristas buscando a retirada das forças russas da Tchetchênia tomaram uma escola em Beslan. Nas ruas da cidade, o "Independent" encontrou os moradores ainda em estado de choque.

 

RUA PERVOMAISKAYA (1º DE MAIO) - Essa é uma das ruas mais compridas de Beslan, correndo paralela aos limites do que restou da Escola Nº 1. Foi essa a rua que sofreu as piores baixas no cerco da escola, e, entre os que morreram, a maioria era de crianças.
Um ano atrás o "Independent" entrevistou famílias residentes nessa rua. Nesta semana, o jornal voltou para ver a diferença na situação.
Ladeada de cerejeiras, tílias e outras árvores, a rua parece tranqüila, mas atrás da porta de cada casa os habitantes ainda se esforçam para entender o que aconteceu com sua cidadezinha.

TRAVESSA ZHUKOV, 7 (UMA PEQUENA TRAVESSA DA RUA PERVOMAISKAYA) -Quem abre a porta é Ludmila Gapoeva, 64. Seu filho Ruslan, 34, foi o primeiro morador de Beslan morto no ano passado. Quando ouviu tiros de fuzil e metralhadora vindos da escola, ele correu para o local armado com sua espingarda.
Consta que teria atirado em um dos seqüestradores, antes de ser abatido. Quando estava deitado no chão, ferido, ele ergueu a cabeça. Um atirador pôs uma bala em sua cabeça, terminando de matá-lo.
Sua filha Zerassa, 6, foi morta no último dia do cerco, e sua esposa, Marina, 35, ficou gravemente ferida por estilhaços de morteiro, mas sobreviveu.
Quando soube da morte do filho e da neta, seu pai, Khariton, 72, sofreu um ataque cardíaco. Seu filho Tamerlan, 6, sobreviveu.
Ludmila diz que a viúva de seu filho não passa de uma sombra do que era. "Hoje em dia ela fala muito pouco. E foi só há pouco tempo que ela recomeçou a andar."
Ludmila conta que Marina passou quatro meses no hospital e foi submetida a duas cirurgias. "Antes, ela era professora de economia, mas não vai trabalhar nunca mais. passa o dia todo em casa."
Quando é mencionado o nome de sua netinha morta, Ludmila começa a chorar. Ela conta que ouviu que o coração e as entranhas da menina foram literalmente arrancados de seu corpo pela força das explosões. "Você pode imaginar algo pior do que isso? Ela queria ser bailarina."
Ludmila conta que tentou esconder a verdade de seu neto, Tamerlan. "Eu disse a ele que seu pai e sua irmã estavam viajando, mas iam voltar. Quando lhe contei a verdade, foi difícil demais. Ele chorou sem parar. Ainda hoje, ele fala de sua irmã como se ela estivesse viva."
Khariton, que sobreviveu ao ataque cardíaco, diz que gostaria que mais dos moradores de Beslan tivessem tomado em armas contra os terroristas.
Os avós culpam a diretora da escola pelo que aconteceu. Dizem que foi a incompetência dela que permitiu que os terroristas se escondessem e ocultassem suas armas na escola com antecedência.

RUA PERVOMAISKAYA, 105 - No ano passado, Taimraz Tokaev não sabia se sua filha Medina, 15, iria sobreviver. Ela foi internada num hospital da cidade vizinha de Rostov com graves ferimentos na cabeça provocados por estilhaços de morteiros.
Hoje, porém, ela sorri ao descrever como passou por duas cirurgias e ficou três meses no hospital. Diz que não se lembra de muita coisa do seqüestro propriamente dito. "Quando lembro disso, fico triste e com medo."
Como a maior parte das crianças e adolescentes de Beslan, Medina não estudou nestes últimos 12 meses. Em vez disso, viajou para a Alemanha e a Turquia em férias recuperativas. "Isso me distraiu por algum tempo", conta.
Embora tenha apenas 16 anos hoje, seus olhos refletem uma tristeza vulnerável e um autoconhecimento incomum para alguém de sua idade. Ela diz que, dentro de um ano, pretende se mudar com suas amigas para São Petersburgo, para estudar.
Indagada sobre quem ela pensa ser responsável pelo que aconteceu, a garota responde, com calma, que prefere não falar disso. Mas explica que não vê problema em viver em Beslan.
"É claro que me recordo do que aconteceu todos os dias, mas, se eu me mudar para outro lugar, terei que recomeçar do zero e fazer novos amigos."

RUA PERVOMAISKAYA, 106 - Há um ano, Valentina Khadartseva não sabia se seu filho Georgy, então com 34 anos, e sua neta Amina, 8, iriam sobreviver. Ambos estavam internados no hospital, em estado crítico.
Georgy recebeu um tiro na cabeça disparado por um franco-atirador quando, com a ajuda de binóculos, tentou ver o que se passava na escola. A lente do binóculo refletiu o sol, e logo depois uma bala atravessou sua cabeça, deixando por pouco de perfurar seu cérebro.
Amina se feriu quando o telhado do ginásio da escola desabou. Ela sofreu ferimentos graves de estilhaços de bomba e teve o crânio fraturado.
Um ano depois da tragédia, Valentina, sua avó, se permite dar um sorriso. Tanto Georgy quanto Amina sobreviveram.
Na verdade, Georgy, usando boné de beisebol para encobrir suas cicatrizes, estava sentado no banco do motorista do carro da família, que ele recentemente reaprendeu a conduzir. Seu braço esquerdo não se move mais e ele tem uma placa de plástico sobre o crânio, mas aparentava estar alegre.
O marido de Valentina, Taimuraz, disse que sua família teve sorte. "Comparada com outras famílias, Deus poupou a nossa."
Mas Valentina disse que Amina ainda está traumatizada. "Ela corre por aí como uma criança normal, mas de vez em quando pára e diz que sua cabeça está girando. Além disso, ela se queixa de dores de cabeça fortes. Por que isso aconteceu? Ainda não sabemos. Putin e o governo são tão culpados quanto quaisquer outros."
O simples fato de Georgy estar vivo é um milagre. Os médicos que cuidaram dele acharam que ele iria morrer. Quando perguntamos se ele próprio se surpreende, ele sorri e diz que sim.
Georgy reclama de períodos de blecaute e de dores de cabeça terríveis, mas diz que está determinado a recuperar-se por completo. "Quero fazer alguma coisa. Quem sabe meu braço volte ao normal dentro de dois ou três anos."

RUA PERVOMAISKAYA, 100 - Um ano atrás, Chermen, então com 8 anos, não entendia realmente que sua mãe, Jana, tinha morrido no cerco da escola. Ele dizia a si mesmo que ela devia estar ocupada demais na cidade para poder voltar para casa.
Doze meses atrás o garoto chegou a falar livremente sobre como tinha sido feito refém e depois libertado. Agora, porém, que compreendeu que Jana não voltará nunca mais, ele parece uma criança diferente.
A morte de sua mãe deixou seu pai, Atzamas, sozinho para criar os quatro filhos. Nesta semana, Chermen estava sentado na cozinha escura de sua casa, brincando nervosamente com um pedaço de barbante, cabisbaixo e respondendo às perguntas com monossílabos. Ele conta que viajou para o Egito e a Bulgária. Diz que gostou mais da Bulgária. Admite que pensa muito no cerco, mas depois faz silêncio.
Seu irmão Tamik, 16, tampouco tem coragem de falar sobre o que aconteceu. Pede para ser desculpado, e seus olhos se enchem de lágrimas. A tia dos garotos, Klara, diz que Chermen não está bem. "Antigamente ele era um menino alegre, mas agora ele vive nervoso, cheio de caprichos, desobediente."
Ela acrescenta que Chermen sempre soube que sua mãe tinha morrido. "Antes de ser resgatado, ele viu sua mãe coberta de sangue." Chermen já recebeu atendimento psiquiátrico, mas, segundo seus familiares, o tratamento não parece ter ajudado.

RUA PERVOMAISKAYA, 95 - Um ano atrás, Kazik Godjiev, 12 anos na época, estava em condição crítica, depois de ser gravemente ferido na cabeça e pescoço por estilhaços de bombas. Os médicos tinham medo de movê-lo de lugar, temendo causar danos a seu cérebro.
Seu irmão Amran, 16, conta que Kazik passou cinco meses no hospital e agora está com o pai deles num resort no sul da Rússia, recuperando-se do trauma. "Seu braço ainda treme quando ele faz uma xícara de chá, mas, deixando isso de lado, ele já se recuperou em 80%", disse o irmão.
Amran afirma que teve mais sorte do que seu irmão menor. "Tento não lembrar daquilo e às vezes acho que já me recuperei bastante, mas Kazik está pior do que eu. Ele ainda tem muito o que superar."
Amran conta que está ansioso por voltar às aulas, em 5 de setembro, para poder retomar sua vida. "Preciso estudar. Já estou farto de passar um ano sem fazer nada."
Mas ele conta que gostou das viagens que fez à Bulgária, Áustria, Alemanha, Ucrânia e Estônia. "Foi maravilhoso. Pude conhecer o mundo. Mas estou contente em viver aqui, por enquanto. O que aconteceu é uma realidade. Não podemos fugir dela."
O rapaz é um dos poucos que não guarda rancor, dizendo que ninguém poderia ter previsto o que aconteceu. Ele acha que as pessoas de Beslan que pensam demais na tragédia correm o risco de perder sua saúde e sua sanidade mental. "Se uma pessoa acha sua vida parou naquele dia, então ela já morreu."
Ele não passou muito tempo com seu irmão Kazik nos últimos 12 meses, mas, mesmo assim, afirma que a tragédia os aproximou. "Hoje eu cuido mais dele, o amo mais do que antes."

RUA PERVOMAISKAYA, 94 - No ano passado, Georgy Torchinov, 11, falou das saudades que sentia de seus amigos da escola que morreram no cerco. O tempo passado desde então não parece ter diminuído sua dor.
"Ainda não me acostumei ao que aconteceu, ainda penso nisso todos os dias. Agora ficou chato aqui. Há poucas crianças com quem brincar."
Georgy aponta casualmente para um garotinho de camisa listrada. "O irmão desse menino morreu. Ele era meu amigo." Diferentemente de outras crianças, ele não tem dificuldade em atribuir a responsabilidade pela tragédia aos terroristas. "Eles fizeram tudo por Alá. Todo o mundo os odeia."

RUA PERVOMAISKAYA, 102 - No ano passado, Taimraz Sidakov, cujo filho Alan,13, foi um dos reféns na escola, disse que queria deixar Beslan e enviar seus filhos para o Reino Unido. Alan sofreu ferimentos leves quando sua mãe, Ira, e seus dois irmãos menores conseguiram fugir da escola antes de os terroristas consolidarem seu controle.
Agora, porém, Taimraz, que trabalha na fábrica de vodca da cidade, diz que desistiu da idéia de mandar Alan para a Inglaterra quando descobriu que seu filho precisaria de alguém que assumisse sua guarda legal. Mesmo assim, sua esposa, Ira, fala que gostaria de deixar Beslan. "Cada vez que passo pela escola, fico apavorada. Me recordo de tudo."
Os Sidakov dizem que as pessoas mudaram profundamente em conseqüência do cerco. Aquelas que perderam seus filhos começaram a sentir raiva das que não os perderam, e as que receberam indenizações menores do governo invejam e odeiam as que foram compensadas mais generosamente.
Ira descreve a situação como insuportável. "Outros pais dizem que seus filhos morreram e que os nossos sobreviveram por algum motivo. Dizem que não é justo. Falam que seus filhos morreram para que os nossos pudessem viver. A tensão é grande, mesmo nesta rua. As pessoas começam a manter distância umas das outras."
O casal conta que recebeu indenização de cerca de US$ 17 mil, dinheiro que guardou para comprar apartamentos para seus três filhos. Eles falam em tom prático sobre como sua relação com a irmã de Taimraz, Rita, deteriorou em conseqüência da tragédia.
A filha de Rita, Alla, 9, morreu no cerco, e, desde então, Rita se tornou membro ativo do Comitê de Mães de Beslan, que vem travando uma bem-sucedida campanha de relações públicas contra o Kremlin.
No último ano, Rita visitou os Sidakov apenas uma vez, e Taimraz não esconde que acha que sua irmã ficou mentalmente instável, tanto que bate na cabeça com os dedos quando se refere a ela.
Quando Taimraz deixa a sala, Ira conta que está fazendo de tudo para convencê-lo a vender a casa. "Ontem estávamos no centro da cidade, e alguns soldados saltaram de um caminhão. Alan achou que estava tudo acontecendo de novo. Tive que acalmá-lo."
E ela diz que Alan se recusa a usar uniforme escolar outra vez. ""Veja o que aconteceu no ano passado, quando você me comprou um uniforme" , ele fala. Este ano eu lhe comprei um jeans preto e uma camisa branca, nada mais."


Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Oriente Médio: Judeus se adaptam à vida pós-retirada
Próximo Texto: Terror: Blair busca elo com imigrante muçulmano
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.