São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

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ENTREVISTA - JOHN LE CARRÉ

"Todos somos espiões", afirma escritor britânico

John le Carré desata sua fúria em seu mais novo romance, "The Mission Song", e diz que escolheu o Congo para o cenário por sentir "fascínio por perdedores"

"The New York Times"
O escritor britânico John Le Carré critica o conceito americano de transformar a guerra contra o terror em uma batalha territorial


ESPER STEIN LARSEN
DO "MORGENAVISEN JYLLANDS-POSTEN", EM COPENHAGUE

John le Carré, que tem 74 anos e é o celebrado autor de 20 romances sobre espionagem internacional, é conhecido como um velho irado. Quando ele nos recebeu em sua suíte no Hotel d'Angleterre, em Copenhague, sua fama de irascível pareceu ser merecida. Após uma hora e meia de conversa, porém, ficou claro que Le Carré, célebre por ter feito a crônica das lutas dos bastidores da Guerra Fria, não é apenas um senhor irado, mas furioso.

Le Carré está furioso com as injustiças sofridas pelas populações dos países em desenvolvimento, com as falhas da "guerra ao terror", com o poder irrestrito das corporações multinacionais, com a hipocrisia de qualquer espécie. Esta ira move seu romance mais recente, "The Mission Song", sobre a tentativa de um grupo de multinacionais de roubar o Congo [República Democrática do Congo, ex-Zaire] de seus recursos naturais. Enquanto os diversos atores na trama conspiram, eles são espionados pelo intérprete Bruno Salvador, filho de um missionário britânico que se desviou de seu caminho e de uma mulher congolesa. Embora seja casado com Penelope, filha da alta classe britânica, branca, Salvo, como o intérprete é chamado ao longo do livro, se apaixona por Hannah, uma imigrante recente do Congo.

PERGUNTA - Ele é um desajustado, como muitos de seus outros personagens principais.
JOHN LE CARRÉ -
Eu quis mostrar a hipocrisia de nos chamarmos a nós mesmos de sociedade do arco-íris e dizer que todos são iguais, ou de afirmar que não tomamos nota da cor dos outros -o que eu acho que é mentira total. Com nossos preconceitos raciais, vamos precisar de pelo menos um século de educação até conseguirmos integrar as pessoas e começar a respeitá-las.

PERGUNTA - O Congo também faz parte da história. O sr. é fascinado por esse país.
LE CARRÉ -
Escolhi o Congo porque sinto fascínio por perdedores. Gosto de histórias sobre fracos e oprimidos. E o Congo é o maior perdedor de todos. O país é uma tragédia absoluta. É um campo de batalha de aluguel para todo o mundo de fora, e os congoleses se arrebentaram todas as vezes. Existem apenas 50 km de estrada pavimentada no Congo, mas os minerais, ouro e diamantes do país valem bilhões.

PERGUNTA - O que o uso feito das zonas de conflito em seus livros diz sobre o Ocidente?
LE CARRÉ -
É uma espécie de efeito colonial que se revela quando exigimos que eles façam eleições, como acabou de acontecer no Congo. É bobagem pura. Não podemos exportar a democracia dessa maneira. A democracia não funciona se não se tem uma administração, um Judiciário, uma força policial decente. Nada disso existe no Congo. Não há infra-estrutura, nem linhas de comunicação. Em lugar disso há muita cultura tribal e guerra entre clãs, então a eleição estava fadada ao fracasso, porque as pessoas votam segundo critérios étnicos. O vencedor leva tudo, e o perdedor dirá que a eleição foi fraudada. A eleição pertence aos países doadores e ao Banco Mundial em medida igual à que pertence ao Congo. Não há dúvida de que uma eleição era necessária, mas é difícil acreditar que ela fornecerá as respostas, sem o resto da estrutura.

PERGUNTA - Fico com a impressão de que, em seus livros mais recentes, o estilo se tornou mais lírico, mas sua mensagem ficou mais forte, mais irada e mais direta. Por quê?
LE CARRÉ -
Espero que as duas coisas sejam verdade. É claro que muitas pessoas dirão que é a ira e o radicalismo da velhice, mas vivemos numa época em que as nuances e variações políticas estão sendo reduzidas a simplificações assustadoras. Li hoje que Bush disse em um discurso que, se deixarmos a guerra no Iraque correr contra nós e trouxermos o nosso pessoal para casa, eles virão para cá, nos procurar na América. Ele deixa de lado o fato de que o Iraque não tem nada a ver com o terror. No entanto, através da repetição interminável e graças à atitude vergonhosamente passiva da mídia corporativa americana, essas mentiras estão entrando na percepção das pessoas comuns. A guerra contra o terror é uma guerra muito difícil contra uma ideologia, mas os EUA a transformaram numa guerra territorial.

PERGUNTA - O que o sr. quer dizer com isso?
LE CARRÉ -
O exemplo mais recente e mais terrível que vimos é o Líbano. Se você mata um terrorista e cem civis, você está mais distante do terror ou mais próximo dele? Estou falando aqui de nossa preservação e da erradicação do terrorismo. Você não vai conseguir isso atirando 25 mil toneladas de bombas nas montanhas de Tora Bora, no Afeganistão, ou eliminando o Partido Baath, que era a única estrutura administrativa do Iraque, ou cometendo abusos em Abu Ghraib. Você não realiza nada se abandona seus princípios democráticos. É preciso ser capaz de aceitar perdas. A lógica que os americanos estão obedecendo neste momento teria exigido que bombardeássemos Dublin quando o IRA nos atacava. É completamente insana.

PERGUNTA - O que eles deveriam ter feito depois do 11 de Setembro?
LE CARRÉ -
Não nutro nenhuma ternura liberal em relação ao terrorismo. Sou inteiramente a favor de que se matem todos os que participaram dos ataques de 11 de Setembro. O que me assusta demais é que nos deixamos levar pelo feitiço do controle das mentes, da simplificação e da psicose de massas e que estamos sendo tragados pela retórica americana. Me incomoda ouvir que Angela Merkel [chanceler alemã] está se aproximando da posição americana ou que a Dinamarca está fazendo o mesmo. Não deveríamos ter declarado uma guerra ao terror depois do 11 de Setembro. Deveríamos ter disponibilizado muitos recursos às forças especiais, e a melhor inteligência possível, e as utilizado para atacar diretamente a jugular das pessoas responsáveis, matando-as. Ninguém teria se importado. Em lugar disso, terminamos com a guerra no Iraque. Não é apocalíptico demais dizer que esse foi possivelmente o primeiro passo em direção à catástrofe global.

PERGUNTA- De que maneira as coisas mudaram em relação à realidade que o sr. descreveu em seus livros sobre a Guerra Fria?
LE CARRÉ -
A Guerra Fria foi uma guerra de ambiguidades. Meu próprio envolvimento me deixou dividido em relação ao que era certo e o que era errado. A questão era até onde deveríamos ir para defender uma sociedade decente -e, ao mesmo tempo, procurar assegurar que a sociedade continuasse a ser decente. De certo modo, é a mesma pergunta que tentei responder em minhas obras posteriores. Acho apenas que agora, na velhice, tenho consciência maior da insensatez particular do momento, um senso maior da catástrofe. A outra coisa que vi, e que considero profundamente perturbadora, é o uso inapropriado feito da inteligência para justificar posições políticas previamente tomadas que, na realidade, não têm justificativa -como foi feito no Iraque. Isso não acontecia em minha época de espião, cem anos atrás. Naqueles tempos a inteligência era uma ciência pura, mas não é esse o caso hoje, evidentemente.

PERGUNTA - Nos velhos tempos, era o conflito entre as superpotências da Guerra Fria que ameaçava o indivíduo. Hoje é a corporação multinacional que desempenha papel grande em seus livros. Por quê?
LE CARRÉ -
O poder das grandes empresas tem estado presente em vários de meus livros mais recentes porque ele cria a aura de algo tão grande, tão incompreensível e que não presta contas a ninguém, que você acha que não pode fazer nada contra isso, como indivíduo. O inimigo é indefinível. Os inimigos são organizações gigantes que têm um pé no Liechstentein, outro nas Antilhas Holandesas, que fazem suas reuniões de conselho na Inglaterra. E, quando você sabe que Tony Blair se preocupa mais com a opinião de Rupert Murdoch do que com o que pensa seu eleitorado, você tem que se preocupar. Eu percebo uma erosão do conceito de nação e de democracia, exatamente como o que Mussolini descreveu. Ele falou: "A democracia termina e o fascismo começa onde o poder político e o poder das empresas são inseparáveis". Seria possível acrescentar a essa lista o poder religioso e o da imprensa. Todos os quatro estão nas pontas dos dedos da direita americana.

PERGUNTA - O sr. sente que seus livros integram um gênero determinado?
LE CARRÉ -
Me sinto um autor. Deixo a cargo da burocracia literária definir o resto. Não vou a festas literárias. Não troco figurinhas com os críticos de Londres. E não permito que meus livros sejam candidatos a prêmios. Não sei lhe dizer se Salman Rushdie é melhor que Philip Roth. Ninguém sabe.

PERGUNTA - Mas o sr. não emprega o thriller ou o romance de espionagem para formular perguntas relevantes, mais do que para entreter?
LE CARRÉ -
Chame-os de romances de espionagem, já que a identidade do espião é tão próxima da natureza do indivíduo que o leitor não tem problema em identificar-se com ele. Compactuamos muito e construímos muitas pontes falsas. Todos nós andamos por aí nutrindo pensamentos secretos que nunca comunicamos -nem mesmo àqueles a quem amamos mais. Talvez precisamente por amá-los. Moldamos uma identidade a partir do que compactuamos conosco. E temos a máscara que vestimos quando nos apresentamos diante das pessoas, a maneira como vestimos nosso disfarce, como moldamos nossas vozes ou olhamos uns para os outros. São todos o fazer de conta que fazemos na vida. Dizemos: "Eu te amo" para sermos educados, para consolar ou para pagar pessoas, mesmo que não estejamos falando a sério. Trate um personagem humano como espião, rotule-o de espião num romance, e o leitor ficará de seu lado e você poderá levá-lo para onde você quiser, para onde ele não esperava ir, e ele o acompanhará, porque somos todos espiões.


JESPER STEIN LARSEN é repórter de Cultura do "Jyllands-Posten", da Dinamarca. A entrevista foi distribuída pelo New York Times Syndicate

Tradução de CLARA ALLAIN


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