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ENTREVISTA - JOHN LE CARRÉ
"Todos somos espiões", afirma escritor britânico
John le Carré desata sua fúria em seu mais novo romance, "The Mission Song", e diz que escolheu o Congo para o cenário por sentir "fascínio por perdedores"
"The New York Times"
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O escritor britânico John Le Carré critica o conceito americano de transformar a guerra contra o terror em uma batalha territorial |
ESPER STEIN LARSEN
DO "MORGENAVISEN JYLLANDS-POSTEN", EM COPENHAGUE
John le Carré, que tem 74 anos e é o celebrado autor
de 20 romances sobre espionagem internacional, é
conhecido como um velho irado. Quando ele nos recebeu em sua suíte no Hotel d'Angleterre, em Copenhague, sua fama de irascível pareceu ser merecida. Após
uma hora e meia de conversa, porém, ficou claro que
Le Carré, célebre por ter feito a crônica das lutas dos
bastidores da Guerra Fria, não é apenas um senhor
irado, mas furioso.
Le Carré está furioso com as
injustiças sofridas pelas populações dos países em desenvolvimento, com as falhas da
"guerra ao terror", com o poder
irrestrito das corporações multinacionais, com a hipocrisia de
qualquer espécie. Esta ira move
seu romance mais recente,
"The Mission Song", sobre a
tentativa de um grupo de multinacionais de roubar o Congo
[República Democrática do
Congo, ex-Zaire] de seus recursos naturais.
Enquanto os diversos atores
na trama conspiram, eles são
espionados pelo intérprete
Bruno Salvador, filho de um
missionário britânico que se
desviou de seu caminho e de
uma mulher congolesa. Embora seja casado com Penelope, filha da alta classe britânica,
branca, Salvo, como o intérprete é chamado ao longo do livro,
se apaixona por Hannah, uma
imigrante recente do Congo.
PERGUNTA - Ele é um desajustado,
como muitos de seus outros personagens principais.
JOHN LE CARRÉ - Eu quis mostrar
a hipocrisia de nos chamarmos
a nós mesmos de sociedade do
arco-íris e dizer que todos são
iguais, ou de afirmar que não
tomamos nota da cor dos outros -o que eu acho que é mentira total. Com nossos preconceitos raciais, vamos precisar
de pelo menos um século de
educação até conseguirmos integrar as pessoas e começar a
respeitá-las.
PERGUNTA - O Congo também faz
parte da história. O sr. é fascinado
por esse país.
LE CARRÉ - Escolhi o Congo porque sinto fascínio por perdedores. Gosto de histórias sobre
fracos e oprimidos. E o Congo é
o maior perdedor de todos. O
país é uma tragédia absoluta. É
um campo de batalha de aluguel para todo o mundo de fora,
e os congoleses se arrebentaram todas as vezes. Existem
apenas 50 km de estrada pavimentada no Congo, mas os minerais, ouro e diamantes do
país valem bilhões.
PERGUNTA - O que o uso feito das
zonas de conflito em seus livros diz
sobre o Ocidente?
LE CARRÉ - É uma espécie de
efeito colonial que se revela
quando exigimos que eles façam eleições, como acabou de
acontecer no Congo. É bobagem pura. Não podemos exportar a democracia dessa maneira. A democracia não funciona
se não se tem uma administração, um Judiciário, uma força
policial decente. Nada disso
existe no Congo. Não há infra-estrutura, nem linhas de comunicação. Em lugar disso há muita cultura tribal e guerra entre
clãs, então a eleição estava fadada ao fracasso, porque as pessoas votam segundo critérios
étnicos. O vencedor leva tudo, e
o perdedor dirá que a eleição foi
fraudada. A eleição pertence
aos países doadores e ao Banco
Mundial em medida igual à que
pertence ao Congo. Não há dúvida de que uma eleição era necessária, mas é difícil acreditar
que ela fornecerá as respostas,
sem o resto da estrutura.
PERGUNTA - Fico com a impressão
de que, em seus livros mais recentes, o estilo se tornou mais lírico,
mas sua mensagem ficou mais forte, mais irada e mais direta. Por quê?
LE CARRÉ - Espero que as duas
coisas sejam verdade. É claro
que muitas pessoas dirão que é
a ira e o radicalismo da velhice,
mas vivemos numa época em
que as nuances e variações políticas estão sendo reduzidas a
simplificações assustadoras. Li
hoje que Bush disse em um discurso que, se deixarmos a guerra no Iraque correr contra nós e
trouxermos o nosso pessoal para casa, eles virão para cá, nos
procurar na América. Ele deixa
de lado o fato de que o Iraque
não tem nada a ver com o terror. No entanto, através da repetição interminável e graças à
atitude vergonhosamente passiva da mídia corporativa americana, essas mentiras estão entrando na percepção das pessoas comuns. A guerra contra o
terror é uma guerra muito difícil contra uma ideologia, mas os
EUA a transformaram numa
guerra territorial.
PERGUNTA - O que o sr. quer dizer
com isso?
LE CARRÉ - O exemplo mais recente e mais terrível que vimos
é o Líbano. Se você mata um
terrorista e cem civis, você está
mais distante do terror ou mais
próximo dele? Estou falando
aqui de nossa preservação e da
erradicação do terrorismo. Você não vai conseguir isso atirando 25 mil toneladas de bombas nas montanhas de Tora Bora, no Afeganistão, ou eliminando o Partido Baath, que era
a única estrutura administrativa do Iraque, ou cometendo
abusos em Abu Ghraib.
Você não realiza nada se
abandona seus princípios democráticos. É preciso ser capaz
de aceitar perdas. A lógica que
os americanos estão obedecendo neste momento teria exigido que bombardeássemos Dublin quando o IRA nos atacava.
É completamente insana.
PERGUNTA - O que eles deveriam
ter feito depois do 11 de Setembro?
LE CARRÉ - Não nutro nenhuma
ternura liberal em relação ao
terrorismo. Sou inteiramente a
favor de que se matem todos os
que participaram dos ataques
de 11 de Setembro.
O que me assusta demais é
que nos deixamos levar pelo
feitiço do controle das mentes,
da simplificação e da psicose de
massas e que estamos sendo
tragados pela retórica americana. Me incomoda ouvir que Angela Merkel [chanceler alemã]
está se aproximando da posição
americana ou que a Dinamarca
está fazendo o mesmo.
Não deveríamos ter declarado uma guerra ao terror depois
do 11 de Setembro. Deveríamos
ter disponibilizado muitos recursos às forças especiais, e a
melhor inteligência possível, e
as utilizado para atacar diretamente a jugular das pessoas
responsáveis, matando-as.
Ninguém teria se importado.
Em lugar disso, terminamos
com a guerra no Iraque. Não é
apocalíptico demais dizer que
esse foi possivelmente o primeiro passo em direção à catástrofe global.
PERGUNTA- De que maneira as coisas mudaram em relação à realidade que o sr. descreveu em seus livros
sobre a Guerra Fria?
LE CARRÉ - A Guerra Fria foi
uma guerra de ambiguidades.
Meu próprio envolvimento me
deixou dividido em relação ao
que era certo e o que era errado.
A questão era até onde deveríamos ir para defender uma sociedade decente -e, ao mesmo
tempo, procurar assegurar que
a sociedade continuasse a ser
decente. De certo modo, é a
mesma pergunta que tentei
responder em minhas obras
posteriores. Acho apenas que
agora, na velhice, tenho consciência maior da insensatez
particular do momento, um
senso maior da catástrofe.
A outra coisa que vi, e que
considero profundamente perturbadora, é o uso inapropriado
feito da inteligência para justificar posições políticas previamente tomadas que, na realidade, não têm justificativa -como foi feito no Iraque. Isso não
acontecia em minha época de
espião, cem anos atrás. Naqueles tempos a inteligência era
uma ciência pura, mas não é esse o caso hoje, evidentemente.
PERGUNTA - Nos velhos tempos,
era o conflito entre as superpotências da Guerra Fria que ameaçava o
indivíduo. Hoje é a corporação multinacional que desempenha papel
grande em seus livros. Por quê?
LE CARRÉ - O poder das grandes
empresas tem estado presente
em vários de meus livros mais
recentes porque ele cria a aura
de algo tão grande, tão incompreensível e que não presta
contas a ninguém, que você
acha que não pode fazer nada
contra isso, como indivíduo. O
inimigo é indefinível. Os inimigos são organizações gigantes
que têm um pé no Liechstentein, outro nas Antilhas Holandesas, que fazem suas reuniões
de conselho na Inglaterra.
E, quando você sabe que
Tony Blair se preocupa mais
com a opinião de Rupert Murdoch do que com o que pensa
seu eleitorado, você tem que se
preocupar. Eu percebo uma
erosão do conceito de nação e
de democracia, exatamente como o que Mussolini descreveu.
Ele falou: "A democracia termina e o fascismo começa onde
o poder político e o poder das
empresas são inseparáveis".
Seria possível acrescentar a essa lista o poder religioso e o da
imprensa. Todos os quatro estão nas pontas dos dedos da direita americana.
PERGUNTA - O sr. sente que seus livros integram um gênero determinado?
LE CARRÉ - Me sinto um autor.
Deixo a cargo da burocracia literária definir o resto. Não vou
a festas literárias. Não troco figurinhas com os críticos de
Londres. E não permito que
meus livros sejam candidatos a
prêmios. Não sei lhe dizer se
Salman Rushdie é melhor que
Philip Roth. Ninguém sabe.
PERGUNTA - Mas o sr. não emprega
o thriller ou o romance de espionagem para formular perguntas relevantes, mais do que para entreter?
LE CARRÉ - Chame-os de romances de espionagem, já que a
identidade do espião é tão próxima da natureza do indivíduo
que o leitor não tem problema
em identificar-se com ele.
Compactuamos muito e construímos muitas pontes falsas.
Todos nós andamos por aí nutrindo pensamentos secretos
que nunca comunicamos
-nem mesmo àqueles a quem
amamos mais. Talvez precisamente por amá-los. Moldamos
uma identidade a partir do que
compactuamos conosco. E temos a máscara que vestimos
quando nos apresentamos
diante das pessoas, a maneira
como vestimos nosso disfarce,
como moldamos nossas vozes
ou olhamos uns para os outros.
São todos o fazer de conta que
fazemos na vida. Dizemos: "Eu
te amo" para sermos educados,
para consolar ou para pagar
pessoas, mesmo que não estejamos falando a sério.
Trate um personagem humano como espião, rotule-o de espião num romance, e o leitor ficará de seu lado e você poderá
levá-lo para onde você quiser,
para onde ele não esperava ir, e
ele o acompanhará, porque somos todos espiões.
JESPER STEIN LARSEN é repórter de Cultura
do "Jyllands-Posten", da Dinamarca. A entrevista foi distribuída pelo New York Times Syndicate
Tradução de CLARA ALLAIN
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