São Paulo, quarta-feira, 03 de novembro de 2004

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ON THE ROAD

Quatro anos depois, West Palm Beach ainda não aprendeu a votar


Eleitores não confiam no sistema, temem que seus votos não sejam contados ou se confundem na hora de votar; senador e ativista Jesse Jackson protesta

Coluna chega ao fim depois de percorrer 4.000 km de carro e atravessar o sul dos Estados Unidos; oito Estados visitados mostram um país cindido ao meio



SÉRGIO DÁVILA
EM WEST PALM BEACH (FLÓRIDA)

A cidade que virou o símbolo de tudo que deu errado nas eleições de 2000 amanhece sentindo os efeitos de dois furacões. O primeiro é Jeanne, que atingiu o balneário no sudeste da Flórida em setembro, cujo poder de destruição ainda pode ser visto principalmente nas pontes interrompidas. O segunda é Theresa, no caso Theresa LePore, ainda a supervisora das eleições no Condado de Palm Beach, que abriga a cidade homônima West Palm Beach.
Logo cedo, ela teve de vir a público para desmentir o mais recente boato, o último de uma série que tumultuou a votação de West Palm Beach quatro anos depois de a cidade liderar a mais polêmica das recontagens. Eleitores reclamaram que na noite de segunda e nas primeiras horas de ontem tinham recebido telefonemas supostamente de pessoas do escritório de LePore dizendo que seu local de votação havia mudado, por conta das construções prejudicadas pelo furacão.
"É manobra eleitoral suja, são criminosos querendo que o eleitor registrado não vote", afirmou ela, durante uma entrevista coletiva. Theresa LePore entrou na história pela porta dos fundos por ter sido a criadora em 2000 da "cédula borboleta", que, pelo desenho confuso, fez com que cidades de maioria judaica desta região votassem em Pat Buchanan, o único então candidato a ter feito comentários anti-semitas ao longo da campanha.
Em agosto último, não foi reeleita para o cargo, que muda de mãos em janeiro. Na época, disse: "Vou ser crucificada o resto da vida por um único erro na minha carreira". Seus críticos, principalmente os democratas, dizem que esse erro custou ao partido a Presidência do país. "Desta vez, nada vai dar errado, pois o sistema todo foi informatizado", afirmou ela à imprensa local no fim de semana -antes de proibir a mesma imprensa de se aproximar dos eleitores nos locais de votação, o que levou um fotógrafo a ser preso.
Pois ainda assim o sistema parece não estar dando certo. Pelo menos foi o que disse Ann Heap, segurando um cartaz do senador democrata John Kerry ao lado da amiga Cara Montgomery, idades não declaradas, numa das pracinhas do centro de West Palm Beach. "Achei o processo confuso e não estou segura de ter votado como queria", disse ela, que por coincidência é mulher de Peter Heap, embaixador do Reino Unido no Brasil de 1992 a 1993, e veio de Londres só para votar.
Ann mora do lado "certo" do condado, em Palm Beach, uma espécie de "Jardim Europa Sur Mer", só que com muito mais dinheiro que o bairro paulistano -a renda média mensal das famílias é de R$ 35 mil. A estreita ilha, ligada ao continente por uma das pontes atingidas pelo furacão, reúne residências luxuosas de veraneio de milionários norte-americanos e europeus e tem o mesmo status dos Hamptons, em Nova York, e de Martha's Vineyard, em Massachusetts, aliás o Estado de John Kerry.
O lado "errado" virou West Palm Beach. No começo do século passado, o milionário Henry M. Flagler comprou a ilha e vendeu as terras a seus amigos, que construíram mansões e palacetes. Segundo o escritor e jornalista Dominick Dunne, em seu livro "Fatal Charms and The Mansions of Limbo" (1999), findas as principais obras, os operários foram convidados pelos patrões para um churrasco no continente, enquanto suas casas provisórias na ilha eram queimadas num incêndio misterioso. Nascia assim a mais pobre West Palm Beach, a poucas mas convenientes milhas de distância do paraíso.
Gregory Gryczan, 47, e Sandra Hudson, 45, moram do lado de cá. Foram até o Centro de Emergência do condado, onde fica o escritório de Theresa LePore e o principal local de votação. Também não saíram satisfeitos. "Eles tinham perdido a cédula antecipada que eu mandei por correio antes", disse Gryczan. "Acho que, mais uma vez, meu voto não vai contar." Perto dele, Jesse Jackson completava a sensação de "déjà vu". Quatro anos depois, o senador democrata, pastor e ativista negro fazia o mesmo discurso que fez no mesmo lugar em 2000: "Deixe o vencedor vencer e o perdedor perder, é tudo o que peço nesta eleição".

"On The Road" acaba
A coluna chega ao fim. Foram 4.000 km rodados de carro só pela estrada principal, a Interestadual 10, que corta ao sul um país dividido ao meio politicamente como não acontecia desde o final dos anos 60, durante a Guerra do Vietnã e a chamada revolução dos costumes. No trajeto, a democrata Califórnia, o indeciso Novo México, os republicanos Arizona, Texas, Louisiana, Alabama e Mississippi e a confusa Flórida -e a confirmação de que, quanto mais longe dos grandes centros, maior é o apoio a Bush.
A estrada nos tratou bem. Primeiro porque, nos mais de 4.000 km, não há nem um pedágio sequer. Segundo porque, nos mais 4.000 km, não há nem um buraco sequer. Terceiro porque nossos companheiros de rota foram basicamente caminhoneiros gentis e casais de idade viajando em seus trailers gigantes. Esta é uma mania nacional que merece menção e foi tema até de um interessante filme recente, "As Confissões de Schmidt", dirigido por Alexander Payne, com Jack Nicholson no papel principal.
Quando se aposenta, ainda cheio de saúde para dar, com um bom dinheiro guardado no banco e sem muito o que fazer, não é raro o americano médio torrar as economias num trailer e sair pelas estradas conhecendo o país. Encontrei centenas pelo caminho. Se a observação nada científica desta "On The Road" vale algo, a maioria era bushista, pelo menos no adesivo. Com um detalhe curioso: nove em cada dez atrela seu carro de passeio à traseira do trailer, assim pode estacionar nos lotes às portas das cidades e sair para explorá-las com um veículo mais adequado ao perímetro urbano.
Ainda na segunda-feira, pouco antes de abandonar a I-10 e virar à direita, em direção ao sul da Flórida, uma última cidade chama a atenção. É Bagdad, com grafia diferente da maneira com que a capital iraquiana é escrita em inglês ("Baghdad", com agá). Fundada no século 19, cravada entre Milton e Mulat (dá para fazer um quadro de humor só com os nomes das cidadezinhas norte-americanas ao longo da I-10), tem 1.500 habitantes e é um reduto de evangélicos que vota em republicanos há gerações. Fosse qual fosse o resultado das eleições de ontem, George W. Bush sempre poderá dizer que é o preferido em Bagdad.
Mas é hora de devolver o carro. Recebo as instruções de meu aparelho de navegação por satélite da marca Never Lost, modelo Magellan, que batizei de "Magali" e foi ao longo da travessia adquirindo ares de HAL, o computador-sabotador de "2001 - Uma Odisséia no Espaço". "Saia da rodovia em duas milhas", "vire à direita e então ligeiramente à esquerda" etc. Chegamos à locadora, estaciono o carro e movo minha mão em direção ao aparelho, para desligá-lo.
Penso no monólogo final do computador na obra-prima de Stanley Kubrick, quando Dave, o personagem principal, se prepara para desativar HAL, numa espécie de lobotomia cibernética: "Dave, stop. Stop, will you? Stop, Dave. Will you stop, Dave? Stop, Dave. I'm afraid. I'm afraid, Dave. Dave, my mind is going. I can feel it. I can feel it. My mind is going. There is no question about it. I can feel it. I can feel it. I can feel it. I'm afraid..."
Desligo o aparelho. Deixo o vidro aberto para que a mosca que nos acompanha desde Phoenix, no Arizona, saia do carro. Fim da viagem.


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