São Paulo, segunda-feira, 03 de novembro de 2008

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EUA

O corpo dos candidatos

CONTARDO CALLIGARIS

ARNOLD Schwarzenegger, o fisioculturista e ator que é hoje governador da Califórnia, participou de um comício de John McCain, em Ohio.
Schwarzenegger, republicano, apóia McCain. Sem se afastar muito de seu estilo habitual de governo, que é feito de respeito e diálogo com a oposição, ele tentou ser engraçado e disse: "Quero convidar o senador Obama para a academia. Temos que fazer alguma coisa para suas pernas magras. Ele tem que fazer agachamentos...". Tudo isso para chegar à conclusão que difícil mesmo vai ser desenvolver os músculos do pensamento do senador.
Ao relatar essa história, o "New York Post" (jornal popular, a favor de McCain) publicou, no sábado, lado a lado, uma foto de Obama em calção de banho e uma de Schwarzenegger quando ele ganhou o título de Mr. Olympia, em 1975. A piada é capenga, visto que 1) Schwarzenegger, hoje, está longe da forma física de seus 20 anos (circulam, na net, fotos dele em 1996 que não são lisonjeiras); 2) Obama não puxa muito ferro, mas, num jogo de basquete, ele provavelmente daria uma lavada até no Schwarzenegger de 1975; 3) mais importante, o próprio Schwarzenegger, quando entrou na política, sofreu bastante por ser considerado uma massa de carne (eventualmente bem definida) com pouco cérebro...
Seja como for, o comentário que me leva a escrever esta coluna vem de Terry, 46, hispânico, democrata, sentado ao meu lado no Dean & Deluca da rua 46, que estava abarrotado de gente no sábado. Terry olhou para a página do "Post" em que apareciam as fotos de Obama e Schwarzenegger e não se conteve: "Yeah, por que não nos mostram também uma foto de McCain de sunga, hein?".
Claro, McCain tem 72 anos, não puxa ferro nem joga basquete e, como todos sabemos, carrega as seqüelas dos anos passados nas prisões do Vietnã sem que seus ferimentos fossem curados de maneira adequada (tem uma perna rígida e a motricidade de ambos os braços reduzida). Mesmo de terno, a postura de McCain é estranha, caminha como um pato de asas cortadas. Mas isso não tem relevância, sequer satírica, pois o corpo de McCain não é um corpo real, é um corpo simbólico: ele só tem valor por carregar os estigmas de seu serviço à nação.
A bem dizer, Obama poderia lembrar que, na idade em que Schwarzenegger puxava ferro cinco horas por dia, ele estava sentando na biblioteca da faculdade de direito ou, então, batia pernas pelas ruas de Chicago organizando comunidades de cidadãos; isso também é servir à nação.
Ele poderia acrescentar que a escolha de seu esporte preferido é um jeito de manter o contato com os jovens dos guetos, que, pelos EUA afora, reúnem-se nas inúmeras quadras públicas de basquete.
Mas não faria muita diferença. Há uma outra razão pela qual o corpo de McCain é respeitado como corpo simbólico (um registro histórico de seus feitos e méritos) e o de Obama pode ser apresentado e apreciado como corpo real (eventualmente erótico).
Obama não é um descendente de escravos africanos levados para as colônias que se tornariam os EUA; Obama é filho de um africano livre, que chegou aos EUA como estudante. Mas pouco importa: ser negro nos EUA significa carregar o peso da escravidão como uma herança inevitável.
E a escravidão é o momento em que milhões de indivíduos foram privados de qualquer estatuto simbólico (perderam nomes, tradições, história, línguas, direitos) e reduzidos simples e totalmente a seus corpos. Na escravidão, importava que os homens fossem fortes, bons reprodutores, com todos os dentes. Só isso.
É coisa do passado? Nem tanto. A idéia do negro sexual e atleticamente superdotado vinga até hoje e tem esta origem: o escravo só pode mostrar seu valor pelo corpo, que é tudo o que lhe resta.


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