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EUA
O corpo dos candidatos
CONTARDO CALLIGARIS
ARNOLD Schwarzenegger, o fisioculturista e ator que é hoje
governador da Califórnia,
participou de um comício de
John McCain, em Ohio.
Schwarzenegger, republicano, apóia McCain. Sem se
afastar muito de seu estilo habitual de governo, que é feito
de respeito e diálogo com a
oposição, ele tentou ser engraçado e disse: "Quero convidar o senador Obama para a
academia. Temos que fazer alguma coisa para suas pernas
magras. Ele tem que fazer
agachamentos...". Tudo isso
para chegar à conclusão que
difícil mesmo vai ser desenvolver os músculos do pensamento do senador.
Ao relatar essa história, o
"New York Post" (jornal popular, a favor de McCain) publicou, no sábado, lado a lado,
uma foto de Obama em calção
de banho e uma de Schwarzenegger quando ele ganhou o
título de Mr. Olympia, em
1975. A piada é capenga, visto
que 1) Schwarzenegger, hoje,
está longe da forma física de
seus 20 anos (circulam, na
net, fotos dele em 1996 que
não são lisonjeiras); 2) Obama
não puxa muito ferro, mas,
num jogo de basquete, ele
provavelmente daria uma lavada até no Schwarzenegger
de 1975; 3) mais importante, o
próprio Schwarzenegger,
quando entrou na política, sofreu bastante por ser considerado uma massa de carne
(eventualmente bem definida) com pouco cérebro...
Seja como for, o comentário
que me leva a escrever esta
coluna vem de Terry, 46, hispânico, democrata, sentado
ao meu lado no Dean & Deluca da rua 46, que estava abarrotado de gente no sábado.
Terry olhou para a página do
"Post" em que apareciam as
fotos de Obama e Schwarzenegger e não se conteve:
"Yeah, por que não nos mostram também uma foto de
McCain de sunga, hein?".
Claro, McCain tem 72 anos,
não puxa ferro nem joga basquete e, como todos sabemos,
carrega as seqüelas dos anos
passados nas prisões do Vietnã sem que seus ferimentos
fossem curados de maneira
adequada (tem uma perna rígida e a motricidade de ambos
os braços reduzida). Mesmo
de terno, a postura de McCain
é estranha, caminha como um
pato de asas cortadas. Mas isso não tem relevância, sequer
satírica, pois o corpo de
McCain não é um corpo real, é
um corpo simbólico: ele só
tem valor por carregar os estigmas de seu serviço à nação.
A bem dizer, Obama poderia lembrar que, na idade em
que Schwarzenegger puxava
ferro cinco horas por dia, ele
estava sentando na biblioteca
da faculdade de direito ou, então, batia pernas pelas ruas de
Chicago organizando comunidades de cidadãos; isso também é servir à nação.
Ele poderia acrescentar que
a escolha de seu esporte preferido é um jeito de manter o
contato com os jovens dos
guetos, que, pelos EUA afora,
reúnem-se nas inúmeras quadras públicas de basquete.
Mas não faria muita diferença. Há uma outra razão pela qual o corpo de McCain é
respeitado como corpo simbólico (um registro histórico
de seus feitos e méritos) e o de
Obama pode ser apresentado
e apreciado como corpo real
(eventualmente erótico).
Obama não é um descendente de escravos africanos
levados para as colônias que
se tornariam os EUA; Obama
é filho de um africano livre,
que chegou aos EUA como estudante. Mas pouco importa:
ser negro nos EUA significa
carregar o peso da escravidão
como uma herança inevitável.
E a escravidão é o momento
em que milhões de indivíduos
foram privados de qualquer
estatuto simbólico (perderam
nomes, tradições, história,
línguas, direitos) e reduzidos
simples e totalmente a seus
corpos. Na escravidão, importava que os homens fossem
fortes, bons reprodutores,
com todos os dentes. Só isso.
É coisa do passado? Nem
tanto. A idéia do negro sexual
e atleticamente superdotado
vinga até hoje e tem esta origem: o escravo só pode mostrar seu valor pelo corpo, que
é tudo o que lhe resta.
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