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São Paulo, quarta-feira, 03 de dezembro de 2003

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COMENTÁRIO

Criando terrorismo

NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não foi preciso investigar muito para que as autoridades turcas colocassem sob suspeição grupos islâmicos concentrados numa determinada área do pais. Os atentados brutais se sucediam, era quebrada uma convivência secular com uma pequena comunidade judaica e as atenções policiais logo convergiram para ambientes conhecidos. Na Turquia há uma guerra contra os curdos, cujo instrumento político e de luta armada é um partido de extração comunista, laico, portanto.
Os militares incentivaram e deram cobertura à criação de milícias muçulmanas para jogá-las contra os curdos. Aí estaria a origem da onda de atentados que abalaram a Turquia. Não é caso único de tiro pela culatra envolvendo manipulação de extremistas. O fundamentalismo do Hamas instalou-se nos territórios palestinos com a ajuda de Israel e seu eficiente serviço secreto. Seria contraponto ao secularismo da OLP, de Iasser Arafat. Mas o Hamas acabou na linha de frente dos atentados com suicidas-bombas contra alvos civis dentro de Israel.
Depois de incensado tornou-se matéria de abate. Na briga com a Índia hinduísta pelo controle da Caxemira muçulmana, o Paquistão fez o mesmo jogo. Armou e financiou esquadrões islâmicos radicais com a esperança de derrotar a Índia não numa guerra de formato tradicional, mas travada por meio de atentados que, em última instância, se voltaram contra a matriz. A longa tragédia do Afeganistão partiu daí, com a adesão americana e participação da CIA nas maquinações dos militares paquistaneses no poder.
Não se tratava mais da Índia, assunto do Paquistão. Nos anos 80 o Afeganistão foi invadido pelos russos em operação de proteção do regime pró-Moscou. A CIA assumiu o comando da preparação de milicianos islâmicos que iriam combater os "comunistas ateus" no Afeganistão. Era só atravessar fronteiras sem qualquer controle. Há registros de instrutores da CIA se despedindo de "combatentes de Deus" a caminho das montanhas afegãs com gritos de incentivo tipo "vão em frente que Alah está com vocês". Formou-se assim o regime do Taleban.
De estudantes em escolas fundamentalistas no Paquistão custeadas pela CIA, em sua operação de expulsão dos russos do Afeganistão, acabaram assumindo o poder com uma cartilha radical. Bin Laden e a Al Qaeda são subprodutos cuja notoriedade ofusca os demais. O "jihad" como é conhecido hoje, guerrilha santa inclusive com recurso ao terrorismo, começou a existir com a CIA no Paquistão, tendo em vista o que acontecia no Afeganistão. Foi parte da Guerra Fria. Não se esgotou por aí, com a derrota dos russos. Deslocou-se.
Para onde? Samuel Huntigton fala numa guerra entre civilizações, na qual se enquadraria o 11 de Setembro. O tiro pela culatra se reproduz de maneira ainda mais trágica com o Iraque. A maioria dos europeus não aceitou a versão americana de vinculação de Saddam Hussein com os atentados em Nova York e ao Pentágono. Ela nunca foi comprovada, apesar dos esforços da CIA em obter algo que desse vida às afirmações de que a invasão do Iraque se justificou como guerra contra o terror.
A ditadura iraquiana era secular, e Saddam, xingado de apóstata. O ex-ditador foi usado pelos EUA contra os aiatolás do Irã. Hoje os europeus acreditam na existência de uma aliança entre Saddam e islâmicos radicais na insurgência contra a ocupação americana. Estão inseguros. Especialistas acham que os atentados na Turquia podem ser um aviso a todos os que cooperam com o governo Bush no Iraque. Ou que desmantelam células da Al Qaeda e outros grupos na Europa, como é o caso da Alemanha.
Os EUA invadiram o Iraque em sua guerra contra o terrorismo, como Bush não se cansa de dizer, e o terrorismo afinal chega ao Iraque. Os americanos se dizem alvos de atentados. Com a resistência à invasão, juntaram-se Saddam e o islamismo radical.


NEWTON CARLOS é jornalista e analista de questões internacionais


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