São Paulo, segunda-feira, 03 de dezembro de 2007

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ENTREVISTA DA 2ª/ÁLVARO GARCÍA LINERA

Vamos tirar reeleição da nova Carta boliviana

Segundo vice-presidente, questão controversa deve ter referendo próprio

ÁLVARO GARCÍA LINERA afirmou que o governo vai retirar a reeleição presidencial da nova Carta boliviana. O tema, diz, será submetido à avaliação da população em um referendo diferente do que endossará ou não o texto da Constituição. É a primeira vez que La Paz fala da proposta. Mas nem isso, crê García Linera, destravará a tramitação da Carta, que ainda precisa ser votada pela Assembléia Constituinte ponto a ponto.

FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A LA PAZ

Para o vice de Evo Morales, a oposição recusa-se a aprovar a Constituição -que, afirma, estará pronta em 15 de dezembro- para não constitucionalizar a lei de nacionalização dos hidrocarbonetos e terras. Leia os principais trechos da entrevista concedida à Folha, sábado, em seu apartamento.  

FOLHA - O sr. mencionou, numa entrevista logo após a vitória nas eleições, que a Bolívia caminhava para resolver "o empate catastrófico" entre duas forças -conservadoras e progressistas- em que o país estava preso. Com a crise com 6 dos 9 departamentos (Estados), o empate não está colocado de novo?
ÁLVARO GARCÍA LINERA -
Na eleição de 2005, dissemos que isso resolvia a questão do empate catastrófico porque consolidava um projeto de país. Isso não significa que havia acabado a confrontação, mas naquele momento estava claro que a política que viria depois teria eixos definidos, com posições mais conservadoras ou mais radicais, mas já de consenso. Quais são esses eixos? O papel do Estado na economia, a presença dos indígenas e o tema das autonomias. Por isso, digo que, em termos de idéias, o empate se resolveu. Em termos de forças, não. Estamos no processo de resolução gradual e conflituosa do empate catastrófico com provável tensionamento e provas de força. É um momento de dificuldades, de inflexão, mas o que o governo tem como adversário é uma coalização de blocos regionais, com projetos políticos regionais.

FOLHA - E a ameaça dos departamentos de declarar autonomia, o governo não crê que seja real?
GARCÍA LINERA -
Estamos num momento em que o antigo bloco dominante se retira e se entrincheira regionalmente. As fronteiras dos blocos são porosas. Onde parece haver um território da oposição existe, por dentro, outras frentes. Mesmo em Santa Cruz.

FOLHA - E o que o governo fará se eles declararem autonomia de fato?
GARCÍA LINERA -
É um ato de desespero que, esperamos, não vai encontrar respaldo nem legitimidade. Se continuarem com essa atitude de golpe, o governo tem instrumentos legais para sancioná-los, mas também será a sociedade cruzenha, de baixo, que terá de se distanciar dessas decisões.

FOLHA - O sr. já disse que a direita estava sufocando os espaços de diálogo e que isso poderia desencadear uma reação radical em alguns movimentos sociais. É este o cenário?
GARCÍA LINERA -
É um cenário potencial, mas não é o mais provável. Surpreendeu-me um discurso dos movimentos sociais: "Os governadores estão dizendo que vão desacatar o governo nacional. Vamos desacatar também, vamos tomar terras". É um bumerangue: desacato contra o governo dá argumento ao desacato dos trabalhadores contra os empresários, dos camponeses. Eles estão abrindo uma caixa de Pandora que pode ser muito perigosa. Por isso estamos convocando ao diálogo.

FOLHA - Há pessoas do MAS envolvidas nessa convocatória, como o deputado Isac Ávalos...
GARCÍA LINERA -
Não foi o Ávalos, foi um dirigente indígena do oriente, o que nos preocupou.

FOLHA - O governo convocou uma reunião com governadores, que já disseram que não vão. E agora?
GARCÍA LINERA -
Vamos insistir. Quem não vier não poderá falar de democracia ante a opinião pública nacional e externa.

FOLHA - Os governadores dizem que essa convocação não é séria porque não tratará de suas demandas -como a mudança do Renda Dignidade [programa de transferência de renda a idosos financiado com parte de um imposto sobre hidrocarbonetos, que cortará repasses regionais]- nem recuar na Constituinte. Eles, e analistas, sustentam que as duas aprovações foram ilegais.
GARCÍA LINERA -
Sou presidente do Congresso, e a sessão que aprovou o Renda Dignidade foi legal [na terça, quando manifestantes pró-governo cercavam o Congresso, o governo contou com dois suplentes para ter quórum]. Os senadores suplentes, pelo regulamento do Senado, não têm de ser habilitados a participar pelos titulares. Basta que estes estejam ausentes. O Podemos não foi ao Congresso porque não quis.
Não há uma só imagem de um senador agredido ou perseguido pelos manifestantes. Toda a imprensa estava lá. Não foram porque eram a favor do corte de recursos aos governadores, porque isso permite que eles disputem regionalmente com um opositor com menos dinheiro. Não havia perigo. Nunca falaram comigo, mas falaram com o presidente da Câmara dos Deputados, que deu todas as garantias de segurança.

FOLHA - E no texto da Carta, aprovada sem a a oposição. Como responder às críticas de que foi ilegal?
GARCÍA LINERA -
Vamos ter uma nova Constituição em 15 de dezembro. Aprovada em detalhe, tomara que com a oposição. Tudo o que fizemos foi tentar dialogar. Quando a Assembléia entrou em recesso, a pedido do presidente, eu convoquei os constituintes do Podemos. Depois, agregamos 16 forças. Cada vez que fechávamos um acordo, o Podemos se negava a assinar.
Fui falar com o governador Rubén Costas [de Santa Cruz]. Ele me disse: "Vamos nos encontrar mais tarde". Estou esperando até agora. O mesmo com Branco Marinkovic [presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz]. Nem a minha namorada eu persegui tanto...

FOLHA - O governo vai arcar com o custo político e social de levar adiante a aprovação?
GARCÍA LINERA -
O que nos resta? A maioria política tem o direito de exercer sua maioria, mas também tem a obrigação de ouvir o ponto de vista da minoria. Fizemos isso. A minoria tem o direito de se fazer respeitar, mas não de chantagear a maioria. A situação é essa. O que a maioria tem de fazer? Abdicar ante esse capricho político da minoria?

FOLHA - Por trás do conflito da Constituinte não está o tema da reeleição indefinida, presente no texto?
GARCÍA LINERA -
Nossa proposta é que o tema da reeleição, se por um período ou indefinida, seja resolvido em referendo.

FOLHA - Num referendo separado? Não no pacote da nova Carta?
GARCÍA LINERA -
Nossa proposta é que esteja num referendo separado, e o texto constitucional, em outro bloco. Não nos apegamos ao tema da reeleição. O problema não é esse. Não querem a nova Carta. Com a Constituição, se vier a direita ao governo, por exemplo, ela precisará de ao menos 20 anos para mudar a lei de hidrocarbonetos e de terras. A questão é a durabilidade das mudanças que fizemos.

FOLHA - O governo pensa em aceitar a mediação externa no conflito, talvez do presidente Lula?
GARCÍA LINERA -
É um problema nosso. Não tem por que ter um mediador externo.

FOLHA - O presidente Lula e uma comissão da Petrobras vêm à Bolívia na próxima semana. Vai ser acertada a transferência dos campos explorados pela francesa Total?
GARCÍA LINERA -
Esperamos que a Petrobras fique com os campos da Total. Para isso, as empresas estão chegando a um acordo, e me parece que Petrobras pode comprar as ações da francesa. Tomara que aconteça. Isso pode garantir que, no fim de 2008, melhore o fluxo de gás para São Paulo, que já está garantido, Cuiabá e Argentina.
A Petrobras também vai investir nos campos que já tem.

FOLHA - No processo de nacionalização, posições erráticas da Bolívia com a Petrobras melindraram o presidente Lula. As rusgas acabaram?
GARCÍA LINERA -
Essa "nova fase" entre a YPFB [estatal boliviana] e a Petrobras é mais pró-ativa. Entendemos o que aconteceu antes e pedimos a compreensão do povo brasileiro. A Bolívia tinha que recuperar seus hidrocarbonetos, como o Brasil fez. Será uma nova relação baseada em exploração de novas áreas. O Brasil também vai nos ajudar com formação técnica. E a questão mais forte: com o gás que vai para o Brasil, também vai um conjunto de componentes de alto teor energético. No contrato, dizíamos que iríamos entregar um valor energético X, mas estamos mandando um valor X + 5. A fórmula de pagamento desses 5 é o que se está debatendo.

FOLHA - No processo de nacionalização, qual o papel de Chávez?
GARCÍA LINERA -
Zero. Nas conversas que Hugo Chávez mantinha com nosso presidente o tom era sempre: "Em que posso ajudar?" e não "faça isso ou aquilo". Um dia antes da nacionalização, Evo estava em Cuba. O presidente Fidel Castro disse: "Avaliem um pouco, tenham cuidado...". Foi uma decisão do presidente Evo.


NA INTERNET - Leia a entrevista completa em www.folha.com.br/073361


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