São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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Iraquianos tentam refazer vida no Brasil

Em meio a 2 milhões de pessoas que deixaram o país, família Aboud encontra em São Paulo refúgio do caos em Bagdá

Mulheres ainda estão no país e descrevem violência e falta de estrutura; irmãos dizem que situação é ainda pior do que era sob Saddam

Lalo de Almeida/Folha Imagem
Mohammad Aboud (à frente), no Brasil há seis meses, com Saad, Raad e Samir (a partir da esq.), em casa, em São Paulo; desesperança marca relato de irmãos

LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO

Não fosse pelo som de uma ou outra conversa em árabe, o stand de 1x2m em um dos rocambolescos corredores do shopping Mundo Oriental, fincado na rua Barão de Duprat, centro de São Paulo, em nada teria a lembrar a faculdade onde Mohammad Aboud trabalhava como chefe de segurança em Bagdá há quatro anos.
Em meio aos cartuchos de impressora, "recarregamos na hora", um velho computador e o minúsculo balcão que divide com a vendedora Cássia, o iraquiano de 40 anos sorri para os clientes, se esforçando num português ainda incipiente para se adaptar ao país que o recebeu há seis meses. O nome da loja dá a deixa: "Casa Nova".
No único canto da parede não ocupado por mercadoria, um retrato de Rahma ainda pequena. O pai o exibe orgulhoso. Conta que hoje ela tem nove anos e ainda está em Bagdá. A última vez que falou com ele, pediu-lhe dinheiro para que pudesse vê-lo. Faz um mês.
O dia em que Mohammad decidiu vir para o Brasil, deixando mulher e filha em Bagdá com a expectativa de trazê-las tão logo possível, foi quando encontrou o carro cravejado de balas. Havia recebido ameaças antes, mas ignorou-as. Os tiros tornaram o plano de fuga inadiável.
Como ele, desde a invasão americana, em março de 2003, outros 2 milhões dos cerca de 26 milhões de iraquianos deixaram o país, conforme os cálculos do Acnur, o comissariado da ONU para refugiados.
Só no ano passado, foram 640 mil. Outro 1,7 milhão tem o status de "deslocado internamente" -foi forçado a deixar a cidade onde vivia para outra região devido ao redemoinho de violência sectária que se instalou no país com mais vigor de um ano para cá. Neste ano, a expectativa é que somem 2,3 milhões (leia texto ao lado).
Mohammad, que assistiu ao êxodo da faculdade, repete um alerta já feito muitas vezes por agências humanitárias: boa parte dos que fogem são a elite cultural do país. Professores, médicos, engenheiros. Desconfortável com o português, o iraquiano chama o compatriota Ahmed, no Brasil há oito anos, para fazer as vezes de tradutor. "Não vai sobrar ninguém. Estão fazendo do Iraque um país sem futuro", alerta em árabe, olhos muito abertos e mãos espalmadas para cima, para sublinhar a gravidade do que diz.
"Mulheres, talvez?" "Mulheres, crianças e velhos. Os homens que podem estão todos saindo. Quem fica morre", confirma, contando que pelo menos cinco de seus amigos foram assassinados. Todos médicos, diz. Ahmed e Cássia assentem, confirmando a história que já lhes deve ter sido contadas muitas vezes. "Está um horror, você não imagina."

Violência sectária
O horror de que falam é a violência sectária, cuja proporção tangencia os contornos de uma guerra civil. Mas xiitas matando sunitas nas ruas e vice-versa, diz Mohammad, é algo inédito no país, a despeito dos massacres promovidos pelo ditador sunita Saddam Hussein (1979-2003) contra xiitas e curdos que via como adversários.
"Isso veio com os americanos. Minha mãe, xiita, meu pai, sunita. Minha mulher, xiita. Irmãos casados com xiitas. Não tinha briga. Não tinha problema", lembra Mohammad, recorrendo ao português, para voltar ao árabe em seguida e começar a descrever a lista de horrores. "Agora os xiitas vão lá, põem bomba, matam sunitas. Os sunitas revidam, matam xiitas. Não acaba." "O senhor acha que melhora?" "Agora só piora. Ninguém sai de casa. Fiquei quatro anos sem trabalhar, porque a faculdade deixou de funcionar [após a invasão dos EUA]. Só mulher vai para a rua e só para ir ao mercado."
Os mercados são um dos alvos mais freqüentes dos ataques -o outro são postos policiais. Estimativas do governo iraquiano colocam em 12,3 mil os civis mortos em 2006 -o ano mais sangrento desde a invasão-, e a ONU diz que são 62 mil os mortos entre março de 2003 e outubro do ano passado.
A mulher de Mohammad está trancada em casa com a filha e as cunhadas -o iraquiano tem duas irmãs. Quase todos os homens da família estão aqui.
Com ele, dois de seus cinco irmãos deixaram o Iraque há seis meses rumo ao Brasil, onde viviam Saad, 45, que chegou pela primeira vez em 1983 fugindo da guerra com o Irã, e Samir, 31, no país desde 1998 atrás de melhores oportunidades. O sexto, Adebe, está na Síria.
Os Aboud e dois sobrinhos dividem dois apartamentos em Santana, onde acumulam reminiscências como fotos, tapetes, quadros e um narguilê. A sala, com duas TVs -uma para o videogame e outra equipada para receber vários canais árabes- entrega que é mesmo uma casa de homens. As conversas são altas e animadas; visitas entram e saem, brindadas com chá do Ceilão "igual ao de lá, mas comprado aqui".
A família quer se reunir, não sabe ainda se no Brasil ou na Síria. Para chegar aqui, Mohammad gastou US$ 3.000, foi primeiro para a Síria, depois para a França, a Itália e então o Brasil. Agora tenta reunir o dinheiro e cuidar da documentação para trazer a mulher e a filha. "E o senhor não quer voltar ao Iraque?" "Não, agora não dá, muito perigoso. Um dia, talvez."

Saddam
Dias antes, na loja de material de construção que tem com Saad, Samir soltara um comentário pouco freqüente no noticiário. "Era ruim com Saddam, mas está pior agora", diz em seu português carregado de sotaque, mas sem falhas. "Os americanos acabaram com tudo. Acho que nem adianta mais eles saírem. Talvez até piore."
Seu irmão e sócio, que já viveu no Reino Unido e nos EUA, faz coro. "Antes tínhamos só um Saddam. Agora temos um em cada rua, cada um com sua própria milícia", diz. "E não sou só eu que penso assim. Já ouvi isso de sunitas, xiitas e curdos."
Os Aboud mantêm contato freqüente com a parcela (feminina) da família que ainda está no Iraque. Reproduzindo os relatos, falam da precariedade da infra-estrutura de Bagdá -a cidade com melhores condições, segundo relatórios do governo iraquiano- raramente conta com mais de quatro horas de energia por dia. No inverno -a temperatura em janeiro bateu em -1C - a situação piora.
A economia parou; sair de casa é aventurar-se sem certeza de volta, o desemprego supera 50%. E uma convivência que antes era harmoniosa -ao menos na capital, segundo os Aboud- virou um inferno.
"Do que vocês sentem mais saudade?" Mohammad divaga. "Saudade, saudade... muita." E Saad lamenta. "A cidade que conhecemos não existe mais."


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