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Iraquianos tentam refazer vida no Brasil
Em meio a 2 milhões de pessoas que deixaram o país, família Aboud encontra em São Paulo refúgio do caos em Bagdá
Mulheres ainda estão no país e descrevem violência e falta de estrutura; irmãos dizem que situação é ainda pior do que era sob Saddam
Lalo de Almeida/Folha Imagem
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Mohammad Aboud (à frente), no Brasil há seis meses, com Saad, Raad e Samir (a partir da esq.), em casa, em São Paulo; desesperança marca relato de irmãos
LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO
Não fosse pelo som de uma
ou outra conversa em árabe, o
stand de 1x2m em um dos rocambolescos corredores do
shopping Mundo Oriental, fincado na rua Barão de Duprat,
centro de São Paulo, em nada
teria a lembrar a faculdade onde Mohammad Aboud trabalhava como chefe de segurança
em Bagdá há quatro anos.
Em meio aos cartuchos de
impressora, "recarregamos na
hora", um velho computador e
o minúsculo balcão que divide
com a vendedora Cássia, o iraquiano de 40 anos sorri para os
clientes, se esforçando num
português ainda incipiente para se adaptar ao país que o recebeu há seis meses. O nome da
loja dá a deixa: "Casa Nova".
No único canto da parede
não ocupado por mercadoria,
um retrato de Rahma ainda pequena. O pai o exibe orgulhoso.
Conta que hoje ela tem nove
anos e ainda está em Bagdá. A
última vez que falou com ele,
pediu-lhe dinheiro para que
pudesse vê-lo. Faz um mês.
O dia em que Mohammad decidiu vir para o Brasil, deixando
mulher e filha em Bagdá com a
expectativa de trazê-las tão logo possível, foi quando encontrou o carro cravejado de balas.
Havia recebido ameaças antes,
mas ignorou-as. Os tiros tornaram o plano de fuga inadiável.
Como ele, desde a invasão
americana, em março de 2003,
outros 2 milhões dos cerca de
26 milhões de iraquianos deixaram o país, conforme os cálculos do Acnur, o comissariado
da ONU para refugiados.
Só no ano passado, foram
640 mil. Outro 1,7 milhão tem o
status de "deslocado internamente" -foi forçado a deixar a
cidade onde vivia para outra região devido ao redemoinho de
violência sectária que se instalou no país com mais vigor de
um ano para cá. Neste ano, a expectativa é que somem 2,3 milhões (leia texto ao lado).
Mohammad, que assistiu ao
êxodo da faculdade, repete um
alerta já feito muitas vezes por
agências humanitárias: boa
parte dos que fogem são a elite
cultural do país. Professores,
médicos, engenheiros. Desconfortável com o português, o iraquiano chama o compatriota
Ahmed, no Brasil há oito anos,
para fazer as vezes de tradutor.
"Não vai sobrar ninguém. Estão fazendo do Iraque um país
sem futuro", alerta em árabe,
olhos muito abertos e mãos espalmadas para cima, para sublinhar a gravidade do que diz.
"Mulheres, talvez?" "Mulheres, crianças e velhos. Os homens que podem estão todos
saindo. Quem fica morre", confirma, contando que pelo menos cinco de seus amigos foram
assassinados. Todos médicos,
diz. Ahmed e Cássia assentem,
confirmando a história que já
lhes deve ter sido contadas
muitas vezes. "Está um horror,
você não imagina."
Violência sectária
O horror de que falam é a violência sectária, cuja proporção
tangencia os contornos de uma
guerra civil. Mas xiitas matando sunitas nas ruas e vice-versa,
diz Mohammad, é algo inédito
no país, a despeito dos massacres promovidos pelo ditador
sunita Saddam Hussein (1979-2003) contra xiitas e curdos
que via como adversários.
"Isso veio com os americanos. Minha mãe, xiita, meu pai,
sunita. Minha mulher, xiita. Irmãos casados com xiitas. Não
tinha briga. Não tinha problema", lembra Mohammad, recorrendo ao português, para
voltar ao árabe em seguida e começar a descrever a lista de
horrores. "Agora os xiitas vão
lá, põem bomba, matam sunitas. Os sunitas revidam, matam
xiitas. Não acaba." "O senhor
acha que melhora?" "Agora só
piora. Ninguém sai de casa. Fiquei quatro anos sem trabalhar, porque a faculdade deixou
de funcionar [após a invasão
dos EUA]. Só mulher vai para a
rua e só para ir ao mercado."
Os mercados são um dos alvos mais freqüentes dos ataques -o outro são postos policiais. Estimativas do governo
iraquiano colocam em 12,3 mil
os civis mortos em 2006 -o
ano mais sangrento desde a invasão-, e a ONU diz que são 62
mil os mortos entre março de
2003 e outubro do ano passado.
A mulher de Mohammad está trancada em casa com a filha
e as cunhadas -o iraquiano
tem duas irmãs. Quase todos os
homens da família estão aqui.
Com ele, dois de seus cinco
irmãos deixaram o Iraque há
seis meses rumo ao Brasil, onde
viviam Saad, 45, que chegou pela primeira vez em 1983 fugindo da guerra com o Irã, e Samir,
31, no país desde 1998 atrás de
melhores oportunidades. O
sexto, Adebe, está na Síria.
Os Aboud e dois sobrinhos
dividem dois apartamentos em
Santana, onde acumulam reminiscências como fotos, tapetes,
quadros e um narguilê. A sala,
com duas TVs -uma para o videogame e outra equipada para
receber vários canais árabes-
entrega que é mesmo uma casa
de homens. As conversas são
altas e animadas; visitas entram e saem, brindadas com
chá do Ceilão "igual ao de lá,
mas comprado aqui".
A família quer se reunir, não
sabe ainda se no Brasil ou na Síria. Para chegar aqui, Mohammad gastou US$ 3.000, foi primeiro para a Síria, depois para a
França, a Itália e então o Brasil.
Agora tenta reunir o dinheiro e
cuidar da documentação para
trazer a mulher e a filha. "E o
senhor não quer voltar ao Iraque?" "Não, agora não dá, muito perigoso. Um dia, talvez."
Saddam
Dias antes, na loja de material de construção que tem com
Saad, Samir soltara um comentário pouco freqüente no noticiário. "Era ruim com Saddam,
mas está pior agora", diz em seu
português carregado de sotaque, mas sem falhas. "Os americanos acabaram com tudo.
Acho que nem adianta mais
eles saírem. Talvez até piore."
Seu irmão e sócio, que já viveu no Reino Unido e nos EUA,
faz coro. "Antes tínhamos só
um Saddam. Agora temos um
em cada rua, cada um com sua
própria milícia", diz. "E não sou
só eu que penso assim. Já ouvi
isso de sunitas, xiitas e curdos."
Os Aboud mantêm contato
freqüente com a parcela (feminina) da família que ainda está
no Iraque. Reproduzindo os relatos, falam da precariedade da
infra-estrutura de Bagdá -a cidade com melhores condições,
segundo relatórios do governo
iraquiano- raramente conta
com mais de quatro horas de
energia por dia. No inverno -a
temperatura em janeiro bateu
em -1C - a situação piora.
A economia parou; sair de casa é aventurar-se sem certeza
de volta, o desemprego supera
50%. E uma convivência que
antes era harmoniosa -ao menos na capital, segundo os
Aboud- virou um inferno.
"Do que vocês sentem mais
saudade?" Mohammad divaga.
"Saudade, saudade... muita." E
Saad lamenta. "A cidade que
conhecemos não existe mais."
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