São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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SOLIDARIEDADE

Organização incentiva consumidores a pagar mais por produtos para ajudar agricultores de países pobres

"Comércio justo" ganha novos mercados

VITOR PAOLOZZI
ENVIADO ESPECIAL A ITÁPOLIS (SP)

Você pagaria um pouco a mais por uma xícara de café ou por um cacho de bananas para ter certeza de que os trabalhadores que os produziram não foram explorados e, além disso, ainda incentivar o desenvolvimento em países pobres? Conhecida como "fair trade" (comércio justo), essa prática está conquistando cada vez mais adeptos na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e no Japão.
Um movimento que começou a tomar forma há 15 anos hoje soma entidades de 17 países -reunidas na Fairtrade Labelling Organizations (FLO; organizações rotuladoras de comércio justo)- , em uma iniciativa para permitir que os consumidores ricos do Norte fiquem seguros de que estão ajudando produtores pobres do hemisfério Sul quando vão ao supermercado fazer compras.
Existem diversas organizações internacionais com esse objetivo, mas a Fairtrade se destaca pela amplitude e pela adoção de um selo que identifica os produtos que certifica. Em 2003, foram comercializadas 77 mil toneladas de produtos com o rótulo Fairtrade, num volume de negócios que está próximo dos US$ 500 milhões (cerca de R$ 1,4 bilhão). Isso, no entanto, ainda é uma gota no oceano: a Organização Mundial do Comércio calcula que em 2002 a agricultura movimentou no planeta mais de US$ 580 bilhões.
Em geral, uma mercadoria com o selo da Fairtrade é de 10% e 20% mais cara. Para o produtor, a vantagem pode ser maior. No caso do café, um fazendeiro ganha apenas US$ 0,65 se vender no mercado normal uma libra (454 gramas) dos grãos. Se operar na rede de comércio justo, ele embolsa US$ 1,26 pela mesma quantidade.

Preço mínimo
A Fairtrade garante aos produtores um preço mínimo, que não se sujeita às flutuações dos mercados de commodities. "O princípio é que o preço mínimo do comércio justo cubra os custos de produção. Um dos principais problemas na agricultura hoje em dia é que os preços dos mercados mundiais nem sequer cobrem esse custos", diz Rüdiger Meyer, diretor-gerente da FLO Cert (o braço da organização que emite os certificados).
A Fairtrade também paga um extra, ou "premium", que deve ser obrigatoriamente investido no desenvolvimento social e econômico das cooperativas e associações e suas comunidades.
O "premium" em alguns casos pode chegar a centenas de milhares de dólares, segundo Meyer. "Temos um projeto no Paraná, de produtores de laranja, em que o acordo é que os beneficiados sejam os colhedores, não os fazendeiros. Eles usaram o premium para conseguir assistência médica e a criação de cursos de alfabetização", diz Meyer.
Em troca do direito de exibir nas embalagens de seus produtos um selo Fairtrade -e assim atrair a atenção dos consumidores politicamente corretos-, os produtores e varejistas precisam aderir a uma série de princípios.
Na questão ambiental, os produtores que aderem às regras da Fairtrade estão proibidos de usar diversos tipos de pesticidas e devem assumir o compromisso de evitar a erosão da terra e proteger fontes naturais de água, florestas virgens e ecossistemas de alto valor ecológico. Embora não seja obrigatório, o cultivo de produtos 100% orgânicos é encorajado.
A Fairtrade afirma que seu trabalho beneficia mais de 800 mil famílias de agricultores, reunidas em 375 organizações produtoras em cerca de 50 países da África, da Ásia e da América Latina. Na outra parte da cadeia, são 337 empresas comerciantes registradas (exportadores, importadores, processadores e manufatores).
As primeiras ações de comércio justo surgiram há 40 anos, com pequenas parcerias isoladas entre importadores e varejistas. Em 1989, na Holanda, foi criado o selo Max Havelaar -o nome foi tirado de um livro do século 19 sobre a exploração de plantadores javaneses de café por mercadores coloniais holandeses. Nove anos depois, surgiu a FLO.
A expansão do comércio justo é do tipo que mereceria ser apontada como exemplo de "espetáculo do crescimento": de 2000 a 2002 as vendas aumentaram cerca de 20% por ano; em 2003, 31%. Em volume bruto, o país que mais consome é a Suíça, mas ela deve ser superada até o final do ano por Estados Unidos e Reino Unido.
"No Reino Unido o comércio justo está na moda. Quando você dá uma festa, tem de fazer com produtos de comércio justo. É um fenômeno semelhante ao que aconteceu há alguns anos com produtos orgânicos", diz Meyer.
No Reino Unido, o comércio de produtos "justos" atingiu a marca de 100 milhões de libras (R$ 536 milhões) anuais. Em 2003, o crescimento das vendas foi de 46%.
A expansão do comércio justo no Reino Unido está sendo impulsionada por adesões de peso. O Exército da Salvação optou por fazer compras apenas de produtos Fairtrade. A Associação de Albergues da Juventude decidiu só oferecer chás e cafés "justos" em seus refeitórios. O exemplo começa a ser imitado por universidades, escolas, grupos de escoteiros e sindicatos.
Para Eileen Maybin, porta-voz da Fundação Fairtrade do Reino Unido, é o entusiasmo e a pressão dos consumidores que provocam o aumento da oferta. "É claro que muitos varejistas relutaram em trabalhar com produtos Fairtrade no passado. Eles acabaram convencidos porque seus clientes querem essas mercadorias. O apoio e a demanda do consumidor são fundamentais para o sucesso da Fairtrade."
"Nossos clientes estão comprando mais e mais Fairtrade, e as vendas crescem à medida que ampliamos a oferta de produtos para novas áreas, como vinhos e flores", afirma Greg Sage, assessor de imprensa da rede britânica de supermercados Tesco, que oferece 60 diferentes mercadorias "justas" em suas prateleiras.
O concorrente Co-Op também investe nesse segmento. "As vendas estão crescendo rapidamente. Em 1998 foram menos de 1 milhão de libras, neste ano venderemos mais de 20 milhões. Por isso estamos lançando mais linhas para atender à demanda", diz Brad Hill, assessor da rede de supermercados, que vende quase 80 produtos com o selo Fairtrade.
Quando se imagina o impacto negativo que causaram à Nike as denúncias de maus tratos impostos aos trabalhadores de suas fábricas de bolas de futebol na Indonésia, fica ainda mais fácil de entender porque muitas grandes empresas encaram uma associação com o comércio justo como uma excelente ferramenta para melhorar sua imagem.
"O legal do comércio justo é que as empresas podem se beneficiar com ele. Dá a elas a oportunidade de fazer parte de um sistema de comércio paralelo sem colocar em descrédito seus produtos tradicionais. Por exemplo, a Teekanne, maior produtor de chá na Alemanha: eles têm três ou mais linhas de chá de comércio justo e o resto é chá convencional. Os varejistas vêem o comércio justo como uma oportunidade, o que nos ajuda imensamente", diz Meyer.

Mais-valia
Apesar de os princípios do comércio justo poderem ser vistos como uma devolução aos trabalhadores da mais-valia, Meyer rejeita qualquer associação com o conceito marxista, ou motivação ideológica, e afirma o caráter prático da iniciativa. "Não somos contra o comércio. Nossa raiz é desenvolvimento e não Karl Marx. Não somos um bando de esquerdistas que têm idéias estranhas sobre a economia. Queremos usar as relações de comércio existentes e simplesmente oferecer dentro disso uma alternativa."
Críticos da Fairtrade, no entanto, afirmam que tudo o que o movimento faz é garantir uma maneira de a classe média aliviar seu sentimento de culpa. O Instituto Adam Smith, uma organização britânica de estudos sobre livre comércio, divulgou um estudo em que afirma que o esquema de comércio justo está "fadado ao fracasso". "No caso específico do café, aqueles que (...) defendem esquemas inconsistentes para elevar os preços podem ter a melhor das intenções, mas não estão realmente ajudando. Na melhor das hipóteses, estão desviando tempo e energia para becos sem saída. Na pior, poderiam acabar tornando a situação ainda pior. As pessoas podem se sentir bem ignorando as realidades do mercado, mas não produzirão nenhum bem", conclui o estudo.
Maybin, naturalmente, rebate essa análise. "Produtos Fairtrade são apenas parte da solução, mas são importantes porque significam uma maneira prática de os consumidores ajudarem os produtores dos países em desenvolvimento. Comprar produtos Fairtrade também é um voto pela mudança das regras do comércio."


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