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ARTIGOS
Momento pode expor progressismo risível
LUIZ FELIPE PONDÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na América Latina é comum se
dizer que o pontificado de João
Paulo 2º estabeleceu uma desconstrução brutal da ala "progressista" da igreja, perseguindo
os representantes da chamada
Teologia da Libertação.
É comum também apontar para uma crise na "qualidade intelectual" das camadas recém-chegadas ao clero, e muitos afirmam
que essa "carência intelectual"
serve à revolução conservadora
estabelecida desde 1978. Em meio
a escândalos de pedofilia e posturas intransigentes com relação a
"evidentes avanços modernos"
(direito ao aborto, ao uso de contraceptivos, ao casamento do clero, à "eutanásia carinhosa", à
abertura para o outro, etc), a igreja estaria imersa num momento
de escuridão.
Muita gente bem intencionada
e com razoável repertório cultural
percebe que a Igreja Católica e seu
oficialato está aquém das demandas de um mundo que se revira
no abismo de mudanças vertiginosas, oferecendo nada mais
além de variedades de "marxismo
à la Cristo" ou de "aeróbicas de Jesus", fincada numa espiritualidade preocupada com o "marketing
do contentamento".
Valeria a pena acrescentar que a
pobreza de espírito não parece ser
patrimônio exclusivo dos oficiais
católicos (talvez lhes falte apenas
mais estilo), mas fato indesejável
em qualquer das instituições oferecidas no mercado religioso,
além de transbordar para instituições não-religiosas de vocação
formadora que também barateiam tudo na esteira da grosseira
e risível ideologia da felicidade: do
metafísico ao psicoterapeuta e ao
professor, todos querem agradar.
É como se o árduo trabalho da
inteligência estivesse órfão. Talvez fosse interessante pensar que
o freio que parece ter significado
este longo papado (na realidade,
tudo que se refere a Igreja Católica e seus 2000 anos pede cuidado
e lentidão na apreciação dos fatos) representa um excelente momento para nos indagarmos sobre algumas dessas "obviedades
conservadoras", principalmente
quando grande parte das atitudes
"progressistas" fazem uso da
mesma violência ideológica discriminatória no plano da militância.
Crenças "corretas"
Por exemplo, critica-se o papa,
mas não a cartilha do lobby "progressista". É muito comum nos
sentirmos bem quando, entre
iguais, reafirmamos nossas crenças "corretas", mesmo que essa
reafirmação possa se dar em meio
à mesma "carência intelectual",
teorias teológicas (ou não) hermeneuticamente tendenciosas,
exegeticamente parciais, confusas
entre conteúdos sagrados e seculares, usando mediações falaciosas, do jovem oficialato conservador preparado para inviabilizar
nossa agenda redentora.
Não se trata de negar a dimensão trágica de muitas das dificuldades doutrinárias e práticas na
qual se encontra a Igreja Católica.
Vivemos de fato num mundo
dramático, e muito disso se dá devido à adesão indiscriminada a
uma prática de redenção infantilizada.
É comum criticar a resistência
desse pontificado ao fim do celibato, mas esse mesmo ocidental
"progressista" acha facilmente
chique o celibato entre lamas. Será que a sociologia "provou" que
a igreja detém o monopólio da indústria da pedofilia e também
"provou" que isso se dá devido ao
celibato?
Evidentemente é um grande risco combater o uso de ferramentas
que nos ajudam a deter a Aids,
mas não é proporcionalmente tão
óbvio reconhecermos que as mediações pedagógicas utilizadas na
formação dos mais jovens estão
na realidade entregues a muitas
teorias e pessoas (religiosas ou
não) que não sabem o que fazer
com a derrocada das práticas afetivas e sexuais, profissionais que
muitas vezes se escondem atrás
de frases de efeito feitas para agradar a auto-estima, produzidas
por especialistas de plantão (também "carentes intelectualmente").
Na realidade, a redução de certas práticas no campo das relações interpessoais também não
seria um mecanismo seguro no
enfrentamento de riscos? Evidentemente que isso dá mais trabalho. O reconhecimento "alegre"
da facilitação do aborto, regra básica de respeito aos casais que
querem se libertar da mecânica
reprodutiva (incomodamente)
associada ao nosso prazer, é muito mais auto-evidente do que a
percepção de que se há reificação
do "humano" nas práticas capitalistas, por que não haveria na higiene cirúrgica que nos liberta do
embrião?
É claro que só uma metafísica
materialista (ou má-fé) pode sustentar essa higiene sem dramas.
Argumentos do tipo "continuam
a existir abortos ilegais" são falaciosos se quisermos refletir com
cuidado sobre o tema, uma vez
que a continuada existência de assassinatos não é suficiente para a
legalização do homicídio.
Isso para não tocar em outros
temas como nossa ambigüidade
entre reificar embriões (e pacientes terminais) para nossa redenção científica e a dura percepção
de que uma defesa irrestrita da
existência biológica (ou da liberação mais rápida desta) é função
da restrição da idéia de moral ao
campo da ética secular e a necessária exclusão da noção de santidade (que nada tem a ver com essa coisa de contentamento, mas
que acabamos, graças a uma teologia em crise de identidade que
se fez humilde serva das ciências
sociais, acreditando que de fato
santidade é coisa só de manobras
políticas e que "aqueles caras"
nunca foram de nada mesmo).
Affaire entre humanos
Há algum tempo o cristianismo
vem se tornando um affaire unicamente entre humanos (e isso
nada garante que sejamos menos
violentos, porque se já se matou
"em nome de Deus", não esqueçamos que o humano mata em
seu próprio nome muito mais).
Na realidade, a possibilidade de
que um papa possa levar a sério a
idéia desse "negócio de cristianismo" estar "para além do humano" (sem excluí-lo) nos parece de
mau gosto. E, no fundo, dá medo:
santidade implica a noção de distinção do comum, de descentramento do humano e suas manias
narcísicas e de superação do
amor por si mesmo. Religião só
como cultura, e isso significa necessariamente que não seja levada
a sério. E isso nos leva a mais uma
faceta com relação às dificuldades
teológicas e sociais desse papado:
um diálogo inter-religioso que visaria nos levar ao Vaticano.
A dificuldade é que num processo deste tipo, elementos definidores da identidade teológica
dos sistemas religiosos são necessariamente postos em cheque (a
não ser, por exemplo, que não
discutamos exatamente os pontos que nos fazem ser o outro de
alguém). É fácil falar em dialogar
mantendo sua identidade teológica, o difícil é continuar o diálogo
para além dos "eventos sociais
para o diálogo".
Evidentemente que qualquer
pessoa razoavelmente culta em
termos teológicos sabe da tendência das correntes monásticas para
um monoteísmo livre de descrições positivas discriminatórias. O
problema é como fazer discernimento sem incorrer em discriminação: a tendência é ficar na anomia ou no ecletismo retórico. Ou
assumir que não dá para fazer
diálogo só em festa. E isso nada
tem a ver necessariamente com
começar a brigar.
Enfim, o pêndulo histórico-teológico que representou o papado
de João Paulo 2º, com seu irritante (suposto) anacronismo, pode
nos servir para elevar o nível da
discussão, variar nossa cartilha, e
perceber que, para João Paulo 2º,
o cristianismo é religião, e não
cultura. Quem sabe assim possamos deixar nus o conservador
grosseiro e o progressista risível,
amedrontados diante da impenetrabilidade do mundo.
Luiz Felipe Pondé, filósofo, professor
do departamento de teologia da PUC-SP, da faculdade de comunicação da
FAAP e professor pesquisador convidado da Universidade de Marburg (Alemanha).
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