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Um papa da era do espetáculo
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Chamar o papa João Paulo 2º de
"carismático" sempre me pareceu
um certo exagero. Popular e midiático, sem dúvida, João Paulo 2º
sempre foi, em especial nos primeiros tempos de seu papado.
Mas o que se espera de um líder
carismático é sobretudo o poder
de impor valores, de mobilizar
consciências, de transfigurar, de
"converter" as massas a determinada visão de mundo. Embora
João Paulo 2º tenha exercido um
papel importantíssimo na guinada política conservadora que tomou conta do planeta a partir da
década de 1980, não me parece
que sua atuação tenha tido efeitos
substantivos sobre o comportamento, as idéias, as predisposições das massas que o consagraram como um dos maiores ícones
do seu tempo.
Não me refiro apenas aos aspectos em que o Vaticano ficou praticamente falando sozinho nos últimos 20 anos, como a condenação
da pílula e da camisinha. De modo geral, a figura "midiática" de
João Paulo 2º ultrapassou todos
os conteúdos doutrinários que tenha procurado transmitir. No seu
caso, o "meio" foi maior que a
mensagem.
Na época de João 23 e de Paulo
6º, a nítida esquerdização da Igreja Católica era uma estratégia de
sobrevivência. Acreditava-se que
o mundo rumava para algum tipo
de socialismo.
Os esforços violentos de resistir
a isso surgiam como simples tentativas de atrasar o relógio da história. A modernização da igreja
passava por sua abertura às idéias
da esquerda. Mas a figura acinzentada, formal e contida de Paulo 6º -não me lembro de uma foto sua em que estivesse sorrindo- diminuía, sem dúvida, o alcance desse projeto.
Na minha memória, o papa dotado de irresistível encanto pessoal e poderes, aí sim, quase mágicos de comunicação, foi João Paulo 1º.
Não me esqueço de sua primeira aparição, acenando sorridente
daquela janela do Vaticano. Disse
que, quando chegara a Roma para
participar da eleição do novo papa, "não fazia a menor idéia... daquilo que acabou acontecendo!".
Era alguém falando como uma
pessoa, não como um detentor de
cargo vitalício e sacrossanto. A revolução de informalidade e de
quebra de protocolo que Albino
Luciani promoveu nos seus poucos dias de papado deixou, na verdade, seu sucessor numa situação
difícil.
Era impossível reverter à frieza
hierática de Paulo 6º. Ao mesmo
tempo, o projeto de João Paulo 2º
era hostil a toda modernização
política no rumo da esquerda. A
solução encontrada foi modernizar o tipo de relação do papa com
o público -torná-lo, como disse
alguém, uma figura "pop". Viagens, papamóvel, publicações, fotografias, atividades esportivas: o
vocabulário contemporâneo das
"celebridades", da espetacularização midiática, foi apropriado com
especial eficiência.
Riscos da impopularidade
Por outro lado, a imprevista
derrocada do regime soviético dava razão e contemporaneidade à
resistência anticomunista do Vaticano. Assim, o que parecia, depois da morte de Albino Luciani,
um impasse estratégico, se revelou uma aposta extremamente
bem-sucedida numa nova forma
de modernização, agora à direita.
Talvez esse sucesso tenha inspirado João Paulo 2º a assumir os riscos da impopularidade na questão dos costumes sexuais.
Sua grande tarefa, a de desmantelar a influência da esquerda sobre a igreja, acabou sendo cumprida; mas essa mensagem doutrinária se esvaziava, à medida
que a própria vitória estava assegurada. O resultado foi um esgotamento estratégico, semelhante
ao esgotamento físico cuja dolorosa espetacularização fomos forçados a acompanhar. Mais uma
vez, ao que tudo indica, caberá a
um novo papa reinventar a velha
Igreja Católica.
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