São Paulo, quinta-feira, 04 de maio de 2006

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RELIGIÃO

Estudo sobre uso de preservativos em casos específicos indica mudança histórica em tema que sempre foi tabu para a igreja

Camisinha revoluciona política do Vaticano

PETER POPHAM
DO "INDEPENDENT", EM ROMA

A Igreja Católica está à beira de uma mudança histórica em sua abordagem quanto ao uso da camisinha, que pode levar esperança a milhões de pessoas na África e em outras regiões subdesenvolvidas devastadas pela Aids.
"Estamos conduzindo um estudo científico, técnico e moral muito profundo", anunciou o presidente do Pontifício Conselho para a Pastoral da Saúde, no Vaticano, cardeal Javier Lozano Barragán. Espera-se que a igreja venha a oferecer sua benção, ainda que restrita e provisória, ao uso de camisinhas por casais casados nos quais um dos cônjuges sofra de Aids, como forma de proteger a saúde do segundo cônjuge. Trata-se apenas de uma concessão técnica, baseada em dois princípios antigos, mas, diante do panorama de sólida recusa das autoridades eclesiásticas quanto a mudanças nas normas da instituição sobre o uso de anticoncepcionais, a mudança pode ser considerada revolucionária.
Em um momento no qual mais de 40 milhões de pessoas estão infectadas com o HIV e que 13 mil novos casos surgem a cada dia no mundo, o Vaticano tem sido acusado de contribuir para o avanço da epidemia em função de sua proibição ao uso de profiláticos.
De acordo com fontes próximas ao Vaticano, um documento definindo a nova posição da igreja já foi aprovado pela pastoral da saúde. Agora, o texto terá de passar por revisão da Congregação para a Doutrina da Fé, e por fim receber a aprovação do Papa Bento 16.
Não se pode dar a mudança de doutrina como certa antes que o papa a assine. Mas o fato de a proposta ter avançado até o ponto atual, com o endosso de meia dúzia de cardeais influentes, é visto como indicação de que a reforma está quase garantida.
Desde a encíclica "Humanae Vitae", do papa Paulo 6º, em 1968, a contracepção se tornou um dos tabus da igreja. Mas, em 1968, a pandemia da Aids não existia. As normas da igreja quanto às camisinhas continuaram a ser de rígida rejeição, já há mais de uma geração, enquanto um desastre que poderia ter sido mitigado, acusam críticos, pela aprovação ao uso de camisinhas, se espalhava sem controle.
A mudança de abordagem foi mencionada no ano passado pelo cardeal Carlo Maria Martini, arcebispo aposentado de Milão, o favorito de muitos católicos liberais para suceder João Paulo 2º. Martini, 79, é considerado figura dominante no Colégio de Cardeais.
Em uma troca de opiniões com um cirurgião publicada pela revista italiana "L'Espresso", Martini afirmou que "certamente o uso de profiláticos pode, em determinadas situações, constituir um mal menor. Existe o caso específicos de casais nos quais um dos cônjuges está sob efeito da Aids. A obrigação deste cônjuge é de proteger a outra pessoa, e um casal como esse deveria ser autorizado a se proteger".
Martini estava se referindo à legitimidade da autodefesa: se a sobrevivência de uma mulher estiver sob ameaça devido aos avanços sexuais de seu marido, ela estaria justificada a se defender persuadindo o homem a usar camisinha -mesmo que o resultado venha a representar um empecilho à concepção de um possível bebê.
Em 2004, o cardeal Lozano Barragán, do Conselho de Saúde, defendeu a mesma posição. Ele declarou que "se um marido infectado deseja fazer sexo com sua mulher que não foi infectada, ela deve se defender de qualquer maneira possível". O cardeal prosseguiu, alegando que essa posição é consistente com a teologia católica, pela qual as ações de autodefesa podem se estender até a matar alguém para evitar a própria morte.
Nem Martini nem Barragan chegaram a advogar o uso de camisinhas -a política "pró-vida", do Vaticano, segundo a qual o propósito do sexo é a procriação, continua sacrossanta. Mas a Igreja tem uma longa e nobre tradição de respeito às nuances morais.
O Papa Bento 16, que acaba de completar um ano de seu pontificado, não costuma ser visto como reformista. Por décadas, ele era visto como o "defensor da fé", na interpretação linha dura adotada por seu predecessor. Mas alguns observadores do Vaticano acreditam que o principal obstáculo a uma mudança fosse João Paulo 2º. Agora, muitos deles acreditam que Bento 16, um purista em questões de doutrina, esteja bem posicionado para levar a posição da igreja a um pequeno avanço na direção de práticas já adotadas pelos fiéis. E também fornecer algum apoio, ainda que tardio, aos profissionais católicos de saúde nas regiões em que a Aids se espalha descontroladamente.


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