São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

Próximo Texto | Índice

CIDADANIA GLOBAL

Cresce a participação em ONGs que lutam por temas como a justiça global e a democracia; "Hoje, se você quer mudar o mundo, não entra em um partido, mas se torna parte de alguma campanha global", diz especialista

Cidadão do mundo

MARIA BRANT
DA REDAÇÃO

O mundo todo viu os milhares de manifestantes tentando bloquear a reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio) em Seattle em 1999. A cena se repetiu em 2000 em Washington e Praga, em reuniões do FMI e do Banco Mundial, e, finalmente, em Gênova, em uma cúpula do G-8 em julho do ano passado, quando a morte de um estudante italiano pela polícia os levou às primeiras páginas dos jornais do mundo.
Cerca de dois meses depois, porém, os terroristas que derrubaram as torres do WTC em Nova York e a subsequente reação dos EUA os empurraram para o "pano de fundo político", nas palavras do jurista americano Richard Falk.
Hoje, pouco mais de um ano após Gênova e pouco menos de um ano após 11 de setembro, eles parecem ter desaparecido, pelo menos da mídia. O movimento de cidadãos globais, ou da sociedade civil global -que ganhou visibilidade com os manifestantes, mas não se limita a eles-, contudo, está mais vivo do que nunca. Mas o que querem os cidadãos globais? Como se organizam?
Em primeiro lugar, pedem para que o movimento ao qual pertencem não seja chamado de antiglobalização, como costumavam dizer as legendas das fotos das manifestações. "Esse termo é uma invenção da mídia. Esse é um movimento de cidadãos pela justiça global", diz Susan George, vice-presidente da Attac-França (Ação pela Tributação das Transações financeiras em Apoio aos Cidadãos). "Eles se opõem à globalização corporativa dirigida pelo mercado, mas não são antiglobalização, o que seria inútil: a tecnologia e a facilidade de viajar estão nos aproximando, e isso é bom."
O termo "globalização de baixo para cima", cunhado por Falk em 1994, passou a designar a causa geral pela qual se orientam. "A globalização de baixo para cima são as forças sociais, movimentos, voluntários, ONGs que tentam criar uma comunidade além do Estado territorial", afirma Falk.
Segundo o sociólogo carioca Liszt Vieira, autor de "Os Argonautas da Cidadania" (ed. Record) e secretário de Meio Ambiente do Rio de Janeiro, eles lutam em torno de três bandeiras: "a democracia política, social e econômica, a diversidade cultural e a sustentabilidade ambiental".
É importante lembrar que a sociedade civil global não é formada só por manifestantes.
De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2002 da ONU, divulgado recentemente, houve um crescimento de 19,3% no número de ONGs internacionais entre 1990 e 2000.
"Essa resistência à globalização econômica dominante se tornou mais visível a partir de Seattle, mas já vinha de muito antes. Os Estados reunidos na ONU já vinham sofrendo pressão e lobby de organizações da sociedade civil", diz Vieira, que acompanhou reuniões internacionais de ONGs de 1991 a 1995. "Houve uma influência real, e em muitas decisões finais da ONU houve influência de propostas da sociedade civil."

Representação
Não é fácil conciliar a imagem de um mundo de cidadãos globais lutando contra as "injustiças da globalização" em um momento de ascensão da direita na Europa e de altos níveis de abstenção eleitoral entre jovens. Mas, segundo os especialistas ouvidos pela Folha, esses dois fenômenos são ligados.
Para Falk, a convivência das duas tendências é normal. Momentos de transformação, diz, sempre provocam reações contraditórias, em que um lado "tenta reviver as formas mais rígidas do velho sistema e outro tenta gerar a base para um novo sistema".
Segundo Mary Kaldor, diretora do Programa para o Estudo da Sociedade Civil Global da London School of Economics, a abstenção eleitoral está relacionada a uma percepção de que o Estado nacional tem menos autonomia. "Muitas pessoas sentem que os governos têm menos capacidade de influenciar diretamente a situação na qual vivemos, então não há mais razão para votar neles."
De fato, segundo uma pesquisa mundial do instituto Gallup apresentada pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, na Cúpula do Milênio, em 2000, dois terços da humanidade não se sentiam representados por seus governos.
Para Kaldor, esse sentimento tem um lado positivo. "Com o crescimento de movimentos sociais e da sociedade civil nos anos 70 e 80, cada vez mais jovens que tradicionalmente teriam entrado na política partidária entraram em ONGs ou movimentos sociais", afirma. "Hoje, se você quer mudar o mundo, não entra em um partido, mas se torna parte de alguma campanha global."
Essa percepção da perda da capacidade do Estado de influenciar a vida de seus cidadãos, aliada à de que grande parte das decisões globais são tomadas por órgãos multilaterais, também levou ao questionamento da representatividade dessas instituições.
Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2002 da ONU, que dedica um capítulo ao assunto, "quase metade do poder de voto no Banco Mundial e no FMI está nas mãos de sete países". Além disso, na OMC, "as decisões são tomadas em reuniões de pequenos grupos e altamente influenciadas por Canadá, União Européia, Japão e EUA".
Diversas ONGs se dedicam especialmente ao assunto. A 50 Years Is Enough, por exemplo, dedica-se à democratização do FMI e do Banco Mundial. Alguns intelectuais, como Falk, e ativistas, como o jornalista britânico George Monbiot, defendem a criação de um Parlamento global, ou assembléia geral dos povos.
A ONU reconhece a possibilidade de uma tal assembléia, mas aponta para o sucesso de campanhas de ONGs e movimentos da sociedade civil em esforços de responsabilização -destacando seu papel na formação do TPI (Tribunal Penal Internacional)- e para um programa de parcerias de empresas com as Nações Unidas.
A parceria é tema de uma das campanhas da ONG CorpWatch. "É preciso examinar as práticas ambientais e de direitos humanos dessas companhias, ou elas podem usar a parceria com a ONU simplesmente como uma jogada de marketing", diz Julie Light, editora-executiva da organização, com sede San Francisco.

Redes
A CorpWatch ilustra bem a ligação entre os movimentos pela justiça global e a internet.
Na rede, há inúmeros sites voltados para o público dos cidadãos globais. No Idealist.org, da Action Without Borders, é possível procurar empregos em ONGs em todo o mundo. No Global Exchange, acham-se até pacotes turísticos -ou "reality tours"- que incluem trabalho em organizações de prevenção à Aids no Zimbábue ou visitas para acompanhar a reconstrução do Afeganistão.
A CorpWatch é um site que publica notícias sobre as práticas de corporações. O objetivo não é pedir o boicote a produtos de empresas consideradas pouco responsáveis, mas informar pessoas físicas que compram ações e dar consultoria a administradoras de fundos de pensão.
A influência da internet sobre o movimento da sociedade civil global não se limita ao uso do meio para divulgar campanhas. Segundo o sociólogo Vieira, a internet influenciou sua forma de organização, "em redes de caráter transversal, e não vertical".
"Há uma preocupação enorme em evitar se transformar em organismos centralizados, como movimentos sindicais", afirma.
Uma das maiores ONGs internacionais, a Friends of the Earth, com 1,1 milhão de membros, é um exemplo. Ela é uma rede de ONGs locais de 70 países que se unem em torno de campanhas comuns.
"Cada campanha envolve o trabalho de muitas de nossas organizações, às vezes tentando influenciar uma posição no nível local, outras vezes tentando influenciar decisões internacionais", diz o ambientalista salvadorenho Ricardo Navarro, presidente da Friends of the Earth International.
A formação em redes tem a ver com os objetivos desses grupos. "Nenhuma organização quer tomar o poder, mas democratizar o Estado para fazer com que ele seja permeável aos influxos e influências que vêm dos organismos da sociedade civil", afirma Vieira.


Próximo Texto: Conceito de cidadania vem da Grécia Antiga
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.