São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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INTEGRAÇÃO

Aprendizado não é unilateral, segundo Chissano, que participou de reunião com Fernando Henrique Cardoso

Experiência brasileira ajuda Moçambique, diz presidente

PAULO DANIEL FARAH
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Entre Brasil e Moçambique, há uma identidade cultural muito maior do que com Portugal, e Maputo vem aprendendo com o país a desenvolver sua agricultura e a combater a Aids. A afirmação é do presidente Joaquim Chissano, 62, para quem o aprendizado não é unilateral. Negros brasileiros quiseram saber da experiência de Moçambique porque "achavam que deveriam participar mais do poder, da economia".

Folha - O que une o Brasil a Moçambique além da língua?
Chissano -
Temos uma identidade cultural muito maior do que com Portugal. Temos no Brasil muita presença africana. A própria natureza é semelhante. Se eu quiser falar da agricultura, não preciso de grandes adaptações. O Brasil produz caju, e eu estou aprendendo a produzir caju com as experiências brasileiras. Essas semelhanças climáticas, da natureza, dos solos e das pessoas são muito importantes. Já tive uma reunião com negros brasileiros em Salvador e eles queriam saber da experiência de Moçambique, da revolução, porque os negros aqui achavam que deveriam participar mais do poder, da economia etc. Falei com pessoas que tinham todas as características para ser moçambicanas.
Houve um tempo em que se sentia uma certa tensão aqui e acolá. Hoje não está tudo completo, mas se avança para um maior sentido de irmandade. Dizia-se "Aqui não há nenhum branco que não tenha sangue negro", mas o comportamento não correspondia a isso. Hoje eu me sinto melhor no Brasil que antes.

Folha - O sr. é a favor de ações afirmativas em universidades?
Chissano -
Sou contra processos que exacerbam a diferença.

Folha - Que tipo de cooperação há entre os dois países?
Joaquim Chissano -
Começamos lentamente, mas já temos um número de estudantes que começa a significar algo no Brasil. Temos estagiários, sobretudo na área agrícola, que começam a fazer diferença na produção em nosso país. E temos um apoio considerável na capacitação institucional. Vamos expandir a cooperação, na área da investigação, da informática. Na área da saúde, sobretudo no combate à Aids, estamos a colher experiências do Brasil.

Folha - A Aids é um dos principais problemas da África, onde se concentram 70% dos casos mundiais. O que Moçambique está fazendo como prevenção e tratamento?
Chissano -
Criamos um conselho nacional que coordena o trabalho e compreende elementos do governo e da sociedade civil. Os vários setores do governo assumem compromissos muito concretos, e o empresariado nacional e estrangeiro participa do programa. O acento tônico é posto na prevenção. Há ainda a parte curativa, da mitigação dos efeitos da doença.

Folha - Falta o Brasil perdoar 5% da dívida externa moçambicana. Há algum sinal nesse sentido?
Chissano -
Creio que haja problemas técnicos. É preciso ter capacidade para poder perdoar e é preciso que os brasileiros queiram isso. Esses 5% representam muito pouco em relação à dívida que o Brasil tem. Capacitar Moçambique trará benefícios mútuos. Há um retorno indireto que pode vir com o perdão da dívida. Hoje, há muito investidor que vem a Moçambique para grandes investimentos e que provém de países que já perdoaram a dívida e que certamente vão ter retorno.

Folha - O FMI elogiou Moçambique no último dia 9 pela recuperação econômica após as cheias de 2000/2001 (as piores dos últimos 50 anos), e a previsão de crescimento do PIB é de 9%. A que o sr. atribui esse desempenho? O sr. vem de um partido originalmente de linha marxista. Pode-se conciliar uma economia de mercado com uma ênfase no social?
Chissano -
Não tenho uma fórmula que possa vender ou emprestar. O fato de nós termos nos empenhado nessa linha socialista ou marxista em tentar resolver os problemas sociais nos ajuda a ver que é necessário primeiro fazer crescer a economia para termos os meios com que viabilizar um programa. Como partido socialista, o bem-estar do povo é o mais importante, mas precisamos criar os meios. Isso só pode ser feito através do crescimento econômico. Temos conseguido manter um certo equilíbrio. Temos muito desemprego, mas estamos a fazer esforços para criar programas de investimento capazes de absorver os desempregados. Assim, estamos a desenvolver o turismo. A atividade açucareira estava paralisada e nós tivemos uma grande negociação com o FMI e o Banco Mundial para revitalizarmos a indústria açucareira.

Folha - A desnutrição é um problema grave em Moçambique, que afeta 54% da população, segundo a ONU. E o país (com outros da África subsaariana) ocupa a 170ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. O que está sendo feito para combater a fome?
Chissano -
Incentivamos uma produção diversificada e tentamos levar ao conhecimento do camponês as formas de utilização dos produtos que tem para sua alimentação. Há muitos produtos que existem e cuja utilização, quando malfeita, provoca desnutrição. Temos um atraso na pecuária por causa das várias calamidades, da guerra etc. Hoje estamos a repovoar o país com o gado, com a piscicultura. Iniciamos uma experiência-piloto na Província de Manica. Começamos há pouco tempo e há uma população que produz o seu próprio peixe sem depender do rio ou do mar. Isso melhora a qualidade de seus alimentos. E estamos a produzir mais cereais. Temos auto-suficiência quase total em milho, exceto com a seca, que afeta mais de 600 mil pessoas. E temos um programa para aumentar a produção de arroz e em pouco tempo chegarmos à auto-suficiência.

Folha - O que o sr. pensa dos transgênicos?
Chissano -
Promulgamos uma lei que proíbe a importação desses produtos geneticamente manipulados por causa da controvérsia. Aguardamos aquilo que os cientistas vão nos dizer, se sim ou não. Os EUA estão quase certos de que não há perigo, mas o Brasil está a fazer as suas experiências. Estamos a acompanhar e estamos dispostos a alterar a lei para permitir a importação, mas neste momento nós não estamos a aceitar esses produtos no nosso país.


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