São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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ARTIGO

Torres Gêmeas devem ser reerguidas em Nova York


SALMAN RUSHDIE

Passei uma tarde longa e triste, certo dia do último mês de novembro, caminhando em volta das ruínas ainda fumegantes do World Trade Center, tentando apreender o horror daquilo que estava vendo, trocando cumprimentos espantados com estranhos igualmente chocados.
Vi meu próprio atordoamento refletido nos olhos das outras pessoas reunidas no local -não, acredito eu, como voyeurs, mas movidas por uma compulsão mais grave e mais honrosa de prestar testemunho. Na expressão um tanto quanto diferente das pessoas que iam para o local diariamente -os funcionários dos serviços de emergência e pessoas que trabalham em lojas e escritórios da vizinhança-, percebi outra coisa: elas quase que evitavam nossos olhares, virando suas cabeças para o outro lado, longe da visão insuportável, para que lhes fosse possível continuar.
Caminhei durante horas, olhando nos olhos das pessoas à procura das respostas que nenhum de nós tinha. Ninguém se ofendeu com meus olhares diretos. Era um momento em que manter contato olho a olho parecia ser necessário, até mesmo reconfortante.
Meu próprio olhar era puxado para o alto, a toda hora, olhando para o céu vazio. Muitas pessoas já escreveram e falaram sobre a força que tem a ausência das torres na paisagem. O olho as busca onde antes as encontrava e, quando não as encontra, fica incrédulo. A ausência vira presença.
Naquela tarde de novembro, ali no ponto zero, o ar vazio pareceu juntar-se e assumir aquelas imensas formas perdidas, elevando-se em direção à memória do incêndio crescente. "Foi ali que aconteceu", fiquei lembrando a mim mesmo, "não aqui embaixo, mas lá em cima". Tentei identificar cubos de espaço vazio "lá no alto" que pudessem corresponder à localização exata dos crimes gêmeos, querendo, de maneira um pouco maluca, retomar a posse daqueles espaços pela pura força do enxergar. Um avião passou lá no alto e me fez recuar, assustado.
Agora que o tema das conversas na cidade passou da simples expressão da dor para idéias de reconstrução, esse anseio pelo céu é o que recordo com mais força. Também me recordo de ver o senador democrata de Nova York Charles Schumer falando na TV após os ataques, em tom comovente, querendo sua cidade de volta. E lembro as decisões tomadas no Reino Unido e na Polônia do pós-guerra, após os danos causados por bombas à sede do Parlamento, em Londres, e a todo o coração da cidade de Varsóvia.
As populações de Londres e de Varsóvia também queriam suas cidades de volta -e reconstruíram o Palácio de Westminster e o centro de Varsóvia exatamente como eram antes.
A acreditarmos nos resultados de uma pesquisa recente, a maioria dos nova-iorquinos pensa como elas. Eles querem que as Torres Gêmeas sejam reerguidas exatamente como eram antes, ou, pelo menos, tão altas e grandiosas quanto antes. "Consertem nossa cidade", pedem. "Não podemos fazer o passado "desacontecer", mas podemos eliminar a cicatriz que ele deixou."
Os argumentos contrários surgem imediatamente. O lobby "memorialista", liderado pelos familiares dos mortos, quer que o local onde se erguia o WTC seja visto como solo sagrado. O lobby "anticapitalista", que se aliou aos memorialistas, faz objeção à influência excessiva exercida sobre as seis propostas recém-apresentadas pelas exigências feitas pela Autoridade Portuária (de que os novos projetos garantam tanto espaço de escritórios e hotéis quanto havia antes) e pelo arrendatário Larry Silverstein (que quer edifícios equivalentes aos que ele perdeu). O lobby "arquitetônico" argumenta que não se pode repetir o passado, que temos a oportunidade de erguer os grandes edifícios do futuro, não apenas de fazer eco ao passado.
E o lobby do "perigo" acha que erguer outros edifícios muito altos seria um convite a alguém para que voltasse para derrubá-los e que, além disso, seria inútil, já que ninguém vai querer voltar a trabalhar "lá em cima".
Nos dias que se seguiram à apresentação dos seis planos, todos esses lobbies -e outros também: não nos esqueçamos da determinação do governador Pataki de não deixar que nada seja construído sobre as "pegadas" das torres- vêm expressando seus pontos de vista. O resultado dessa democracia toda pode ser a construção de uma nova Baixa Manhattan que todos sintam que podem apoiar, ou, o que é mais provável, poderá ser uma série de soluções de meio-termo, confusas e receosas: um esquema que será um camelo de várias corcundas -levando em conta, como diz o ditado, que o camelo é um cavalo desenhado por um comitê.
Ora, acontece que minha própria idéia para a reconstrução -ou, possivelmente, uma idéia exatamente igual à minha que, por pura coincidência, tenha sido imaginada por outra pessoa- foi incorporada em mais de uma das seis propostas. Depois daquele dia passado olhando para o céu,


"Os nova-iorquinos querem que as Torres Gêmeas sejam reerguidas exatamente como eram antes, ou, pelo menos, tão altas e grandiosas quanto antes"


pensei: "Alguma coisa grandiosa precisa ser erguida aqui" (sim, se eu tivesse que optar, provavelmente me colocaria ao lado daqueles que querem que os novos edifícios se pareçam com as torres caídas, pelo menos externamente). As pessoas que destruíram as torres fizeram uma afirmação simbólica, e nós precisamos responder em termos também simbólicos. Assim, que tal erguermos aqui uma nova torre de 110 andares, ou mesmo duas torres, mas deixando vazios os últimos 30 ou 40 andares da torre ou das duas torres, repletos apenas de luz, como um gigantesco átrio ou par de átrios, e que tal esse próprio espaço vazio ser um memorial? Um memorial no próprio espaço de céu em que os ataques se deram, um memorial que retomasse posse daquele espaço para sempre, dignificando-o? Que tal gravarmos nas paredes daquele memorial ou daqueles memoriais gêmeos os nomes dos desaparecidos, como uma versão em espaço negativo do memorial aos mortos na Guerra do Vietnã, em Washington? Não seria essa uma solução aceitável por todos os lobbies?
Fiquei sabendo, por acaso, que um amigo meu, o artista britânico Brian Clarke, estava dando assessoria a Larry Silverstein e sua equipe de arquitetos, aconselhando-os sobre o que poderia ser feito no local. Falei com Clarke, descrevendo minha idéia; ele gostou e disse que a passaria para a frente. Desde então não tive nenhuma notícia, mas agora leio que, nas palavras de um órgão de imprensa, "quase todos os projetos apresentados incluem uma torre memorial primeiro sugerida por arquitetos a serviço do arrendatário do WTC, Larry Silverstein, que seria pelo menos tão alta quanto os edifícios derrubados, de 110 andares, e teria mais de 40 andares de espaço vazio e transparente em sua parte superior". Estou ao mesmo tempo espantado, gratificado e perplexo. Tentei descobrir se esta é, de fato, uma versão de minha idéia original, mas até agora não tive resposta. Em última análise, porém, não importa de quem foi a idéia. Ainda acho que é boa e ainda a recomendo a todas as partes envolvidas.
O que importa mais é que seja feita rapidamente uma escolha quanto à natureza do que se pretende: queremos criar uma necrópole ou uma fênix? Me atrevo a sugerir que os homens e mulheres laboriosos que estavam trabalhando no momento em que a morte chegou voando pela janela seriam melhor representados pela recriação de um ambiente de trabalho espetacular, pela regeneração da cidade que amavam. Certamente isso seria um memorial mais belo do que qualquer estátua, coluna ou átrio no céu, repleto de luz: a visão da área da Baixa Manhattan com toda sua energia e seu dinamismo de antes, de Nova York olhando, como sempre fez, para o futuro, e não para o passado.


Salman Rushdie, 54, escritor britânico de origem indiana, é autor de "Os Versos Satânicos", "O Último Suspiro do Mouro" e "Fury" (ainda sem título em português), entre outros livros.


Tradução de Clara Allain

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