São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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ARTIGOS

Bush venceu. E agora?

LUIS BITENCOURT

ESPECIAL PARA A FOLHA

Por trás dos olhos avermelhados pela ressaca política, os republicanos não escondem, hoje, uma enorme sensação de alívio. Depois de momentos de inegável tensão, podem, finalmente, festejar a vitória do presidente George W. Bush sobre o senador John Kerry. Desta vez, diferentemente do que aconteceu há quatro anos, podem festejar sem culpa, porque a vitória foi indiscutível.
Bush ganhou, primeiro, em virtude da eficiência da máquina de marketing republicana. Com habilidade e cinismo, essa máquina soube desviar as atenções dos eleitores das desastrosas notícias vindas do Iraque e do sofrível desempenho da economia americana. No fim das contas, temas de natureza moral, como direito ao aborto e casamento de gays, acabaram deixando Kerry atolado em meio a explicações nem sempre objetivas. Assim, muitos dos eleitores acabaram decidindo não entre Bush e Kerry. Acabaram decidindo entre Bush e não-Bush.
Na guerra pelos Estados, Bush teve alguma dose de sorte, por assim dizer. Foi bafejado por dois furacões que castigaram a Flórida. O socorro e a assistência financeira, devidamente coordenados pelo mano governador Jeb Bush, chegaram rapidamente. Os moradores da Flórida, por sua vez, souberam retribuir com gratidão e votos toda a atenção que receberam naqueles difíceis momentos. Com isso, o fiasco das eleições de 2000 não se repetiu, e os republicanos ganharam os votos eleitorais da Flórida com alguma folga.
O fato é que ganhou Bush tanto no Colégio Eleitoral quanto no voto popular. Ademais, os republicanos fortaleceram sua maioria tanto na Câmara quanto no Senado. Há mais legitimidade do que isso? O presidente Bush não poderá queixar-se de falta de poder político nos anos que se seguirão.
Bush sabe que precisará desse poder para liderar o que é hoje um país profundamente dividido.
A sua tarefa mais urgente deverá ser no sentido de recriar algum senso de unidade entre os cidadãos americanos. A seqüelas deixadas pelas eleições passadas foram vencidas só incidentalmente pela reação aos atentados terroristas de 11 de Setembro. Mas essa união momentânea acabou sendo, outra vez, corroída pela Guerra do Iraque, pela imagem arrogante do presidente e por essa campanha política. É agora que as mentiras, as distorções e a intensa propaganda negativa que proliferaram durante a campanha cobrarão seu preço. Recriar a unidade não será tarefa fácil, portanto.
O seu segundo esforço deverá ou, pelo menos, deveria ser no sentido de recuperar algum terreno na relação com as esquecidas alianças européias e de suturar as feridas deixadas na ONU.
Nessa linha, segue-se o enfrentamento do pesadelo iraquiano. O esforço de reconstruir o Iraque e colocar o país sob a direção de iraquianos, escolhidos em um processo eletivo, é tão importante quanto difícil, no estado de insegurança reinante. A ONU é indispensável para as duas circunstâncias. Mas que não se lhe cobre, agora, responsabilidade e legitimidade por algo que foi negado na origem do problema, ou seja na decisão unilateral de iniciar-se a guerra.
Bush terá também que envolver-se rapidamente com outra questão antipática mas inevitável, cujo encaminhamento depende do envolvimento americano: a quase permanente crise israelo-palestina. Ele terá que revisar e reposicionar sua, até agora, clara parcialidade perante o problema. Que fim levou o "roadmap" anunciado com pompa e circunstância há poucos anos?
Na esfera doméstica, o governo Bush precisará reativar a economia americana diante de um contexto internacional desafiador caracterizado por pressões crescentes no comércio internacional e por altos preços do petróleo. Embora Bush venha mencionando resultados positivos na geração de emprego, estes referem-se apenas aos últimos três meses. Não houve ainda recuperação significativa do nível de emprego capaz de equilibrar as perdas acumuladas nos últimos dois anos. Os americanos estão exigindo mais do que cortes de impostos para os mais ricos. Por exemplo, fórmulas de aquecimento da economia.
É apenas nesse quadro do comércio internacional que inserem-se, em alguma medida, a América Latina e o Brasil. O comércio internacional e as perspectivas, hoje absolutamente nebulosas, da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) são os escassos pontos de contato mais evidentes entre a região e os EUA.
Nesse aspecto pelo menos, a vitória de Bush tem algo de positivo, em comparação com uma possível vitória de Kerry: a manutenção da equipe negociadora. Com isso, pelo menos no nível operacional, não deverá haver interrupção nas negociações. Particularmente, os negociadores atuais conhecem e respeitam a equipe e as posições brasileiras, não raro conflitantes, nos vários fora de negociação de que o Brasil participa. A empatia já existente pode ser positiva.
Finalmente, os latino-americanos perceberam que a América Latina não foi sequer mencionada durante esta campanha presidencial nos EUA. Num quadro realista, é fundamental reconhecermos que os americanos podem dar-se ao luxo de prestar pouca atenção ao restante do hemisfério. A recíproca, no entanto, não é verdadeira, e cabe-nos encontrar fórmulas para empurrar informação e promover os interesses latino-americanos no cotidiano dos norte-americanos.


Luis Bitencourt é cientista político e dirige o programa sobre o Brasil do Centro Woodrow Wilson para Acadêmicos Internacionais, em Washington (EUA)

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