São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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Metade dos EUA não entende outra metade

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

ESPECIAL PARA A FOLHA

Desta vez, o homem ganhou com alguma folga nos votos populares e ampliou sua base de sustentação na Câmara e no Senado.
À minha volta -vivo num bastião democrata-, as pessoas acham incompreensível a derrota. Esse é justamente o problema: metade dos EUA não entende a outra metade. A América desde 2000 se tornou um país cindido, e o bipartidarismo só exacerba essa divisão. O sulista do interior genérico, por exemplo um agricultor do Kansas, é facilmente persuadido de que as duas costas do país são dominadas por uma elite cosmopolita e liberal que tem os principais jornais a seu serviço e que perdeu qualquer contato com os chamados "valores morais tradicionais". E reciprocamente, um liberal de Nova York ou de San Francisco acha incompreensível que a população pobre e a população negra, num quadro de ascensão do desemprego e de declínio da assistência médica, não apoie necessariamente o partido que se apresenta como seu defensor.


Metade dos EUA não entende a outra metade. Desde 2000 se tornou um país cindido, e o bipartidarismo só exacerba essa divisão


Foi isso mesmo que aconteceu: todos previam que um comparecimento maciço às urnas favoreceria os democratas. Apostando nessa leitura, houve uma mobilização inédita de voluntários democratas em todo o país para assegurar o maior número possível de votantes. Duas alunas minhas, anteontem, passaram várias horas na frente de uma estação de voto num bairro paupérrimo e negro de Chicago, vigilantes para que não se boicotassem eleitores e informando-os de seus direitos. Eram parte dos 25 mil voluntários, dos quais 8.000 advogados ou estudantes de direito que se apresentaram. A posteriori, a análise dos republicanos é que a mobilização democrata de eleitores se valeu de várias organizações que acabavam recrutando nos mesmos setores da população, sobrepondo-se umas às outras. Os republicanos teriam discriminado mais, ou assim afirmam. O fato é que o crescimento do eleitorado votante, contra todas as expectativas, não favoreceu especialmente os democratas.
As eleições em quase todos os Estados estavam acopladas não só a outros cargos -aqui, além de senadores e deputados estaduais e federais, elegem-se também vários tipos de juízes locais e outros cargos, alguns exóticos como chefe do setor de águas da cidade de Chicago, mas também há toda a sorte de plebiscitos que vão do mais particular ao mais geral . Na cidade de Urbana, um plebiscito era sobre se se devia restringir o número de vereadores a nove. Com esse rol de perguntas, mesmo com as "colas" que os eleitores eram encorajados a levar, demorava-se de 8 a 20 minutos para preencher um verdadeiro caderninho de voto. Essa forma de votar, a meu ver, ajuda a colocar questões locais em primeiro plano. O voto para juízes, em particular, tem tudo a ver com os famosos "valores morais". Essa expressão, hoje, é uma forma polida de falar de dois assuntos particularmente candentes para os eleitores de Bush, a saber o direito ao aborto e o casamento gay. Em vários Estados em que o resultado da disputa estava incerta, os eleitores tinham de se pronunciar em plebiscitos referentes à legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo e sobre pesquisa com células-tronco. O resultado é que, segundo pesquisas de boca de urna, 22% dos eleitores disseram que os "valores morais" tinham sido determinantes em seus votos, e apenas 15% apontaram o Iraque como fundamental nos seus.
Bush conseguiu, com seu populismo, colocar-se como o defensor dos valores tradicionais e fazer esquecer as mentiras, as manipulações e o desastre econômico que têm caracterizado seu governo. Conseguiu transformar esta eleição em um embate de "valores" professados mesmo que não praticados. Enquanto os eleitores democratas votaram contra a guerra de Bush, os eleitores republicanos votaram contra o casamento gay. Um diálogo de surdos.


Bush conseguiu, com seu populismo, colocar-se como o defensor dos valores tradicionais e fazer esquecer as mentiras


O Partido Republicano é heterogêneo, mas, após a época de Reagan, conseguiu se unificar em torno de um discurso conservador genérico. O Partido Democrático é pelo menos tão heterogêneo quanto o Republicano, mas não parece ter construído um discurso convincente sobre as questões éticas domésticas. E no restante, por exemplo quanto a questões sociais e econômicas, as diferenças entre Bush e Kerry não eram suficientemente grandes: outra conseqüência do bipartidarismo que empurra todos para o centro.
O país teve um breve período de união após o 11 de Setembro e antes da invasão do Iraque. Anteontem, mostrou sua profunda desunião. Do ponto de vista americano, é compreensível que no discurso que acaba de fazer, Kerry tenha falado de reconciliação nacional. Se isso der rédea livre ao homem, no entanto, é assustador.

Manuela Carneiro da Cunha é antropóloga e professora da Universidade de Chicago (EUA)

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