São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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Questão nuclear entrava laço com Brasil


Bush já alertou sobre o que os EUA chamam de "proliferação nuclear"

Outro problema diz respeito às regras de propriedade intelectual



CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MIAMI

O governo brasileiro pode se preparar para dois tipos de dificuldades no relacionamento com os Estados Unidos agora que George Walker Bush ganhou um mandato sem qualquer sombra de ilegitimidade.
Um problema, o principal, será no campo nuclear. No primeiro debate da campanha presidencial, tanto Bush como John Kerry responderam "proliferação nuclear" quando perguntados sobre qual era a maior ameaça isoladamente à segurança nacional dos EUA.
Logo, é razoável supor que o foco estará centrado nesse tema em que o Brasil entra como vítima por tabela. Não há, no Departamento de Estado, suspeitas de que o programa nuclear brasileiro tenha fins bélicos. Mas há, sim, o desejo de evitar que o veto brasileiro à inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica nas instalações da usina de Resende seja visto como estímulo a países (Irã e Coréia do Norte, especificamente) sobre os quais pesam de fato suspeitas.
É sintomático e um espécie de aviso prévio que dois dos mais importantes jornais norte-americanos tenham tratado recentemente do tema nuclear: o "New York Times", em reportagem de seu correspondente Larry Rother, e, ontem, o "Miami Herald".
O governo e os petistas mais fanáticos podem achar que é uma conspiração, ainda mais que Rother tornou-se desafeto de Lula com sua reportagem sobre o suposto hábito de beber do presidente. Mas é apenas reflexo da inquietação da opinião pública: pesquisa recente da rede NBC/The Wall Street Journal mostrou que proliferação nuclear é a preocupação da maioria relativa dos entrevistados (32%).
O segundo tema de conflito são as regras sobre propriedade intelectual. O Brasil, com Argentina e Bolívia, propôs, na Organização Mundial de Propriedade Intelectual, que as novas regras que estão em debate incorporem uma "agenda do desenvolvimento".
Na prática, significa menos rigidez no respeito às patentes, para que países como o Brasil possam adotar políticas industriais, tecnológicas ou de saúde. "É mistificação", reagiu Peter Allgeier, em recente visita ao Brasil. Ele é o segundo homem do USTr, o organismo que faz às vezes de ministério de comércio exterior nos EUA.
Allgeier é também o principal negociador técnico da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), outro ponto de divergência entre Brasil e Estados Unidos. Há fortes especulações de que o chefe de Allgeier, Robert Zoellick, deixará o posto (Andrés Oppenheimer, colunista do "Miami Herald", cita-o como um dos eventuais substitutos de Colin Powell no Departamento de Estado; a outra personalidade mencionada é Condoleezza Rice, hoje assessora de Segurança Nacional).
Mas, fique ou não Zoellick, a divergência sobre a Alca dificilmente mudará de tamanho: o Brasil quer uma Alca "light" em que regras não entrem. Quer que a negociação sobre derrubada de tarifas de importação se faça no modelo 4+1 (Mercosul mais EUA).
Desse ponto de vista, nada muda com a reeleição de Bush.
O que, sim, tende a mudar é um menor unilateralismo, como, aliás, pede a diplomacia brasileira.
"Os americanos parecem ansiosos para reconstruir alianças, não por causa de um súbito entusiasmo por multilateralismo, a ONU ou os franceses, mas porque estão preocupados com o fato de que atuar sozinho forçou demais os recursos dos EUA", escrevem Gerald Seib e Carla Anne Robins para "The Wall Street Journal".
Reforça James Lindsay, diretor de Estudos do Council on Foreign Relations: "Se a doutrina de guerra preventiva não está morta, está na unidade de terapia intensiva. As forças armadas norte-americanas estão fazendo esforço excessivo no Iraque, e portanto não estão em condições de fazer outra grande guerra ou ocupação".
Além disso, pesquisa recente do Council on Foreign Relations, seção de Chicago, mostrou que 87% dos norte-americanos querem que seu país trabalhe em conjunto com a ONU para fortalecer as leis internacionais contra o terror.
Na América Latina, porém, os EUA já vinham sendo mais multilaterais: delegaram, por exemplo, ao Brasil a chefia da missão de paz no Haiti. Não veio, no entanto, a contrapartida, na forma de recursos para a reconstrução do país, sem o que a missão brasileira eqüivale a enxugar gelo.
Da mesma forma, Brasil e EUA atuaram em conjunto na Venezuela, para desarmar a guerra civil que se avizinhava há dois anos. Mas, o multilateralismo norte-americano é acompanhado de um programa unilateral, um fundo supostamente para fortalecer a democracia, que o presidente Hugo Chávez vê como financiamento à oposição para derrubá-lo ou derrotá-lo nas urnas. Não é exatamente o tipo de programa com que simpatiza o governo Lula.


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