São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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Resultado é um pesadelo para europeus

NIALL FERGUSON
DO "INDEPENDENT"

Acabou. O presidente George W. Bush conquistou uma vitória convincente. O Imperador contra-atacou. E o Senador, a despeito das iniciais mágicas, a despeito do grande comparecimento de eleitores, está derrotado.
Para os europeus, o resultado é um pesadelo. Os eleitores europeus eram esmagadoramente favoráveis a Kerry no Reino Unido por margem de quatro a um. Estejam convencidos, quase metade dos norte-americanos se sentem tão atônitos quanto vocês. Tenho de admitir que é o meu caso.
Por que eu desejava que Bush fosse derrotado? Para começar, porque a ocupação do Iraque vem sendo uma sucessão de erros desnecessários. Segundo, e talvez mais importante, eu queria que ele fosse derrotado porque vim a considerar suas políticas fiscais como loucamente irresponsáveis.


São as simplificações que definem o primeiro mandato de Bush, exemplificadas por termos como "eixo do mal", "guerra contra o terror" e "a marcha irresistível da liberdade", que ressoam de maneira irresistível nos americanos


Não houve uma tentativa séria de enfrentar as crises iminentes no seguro-saúde e no plano federal de saúde Medicare; as coisas foram até mesmo um pouco pioradas. Enquanto isso, os cortes de impostos de Bush não tinham justificativa macroeconômica significativa e foram concebidos desavergonhadamente para dar vantagem aos muito ricos. Por fim, passei a enfrentar cada vez mais dificuldades para engolir a intolerância cada vez maior do Partido Republicano com relação a questões sociais, do casamento gay à pesquisa com células-tronco.
No começo dos anos 80, eu era um dos jovens conservadores que torciam por Margaret Thatcher e Ronald Reagan em seu confronto com a União Soviética, os sindicatos e a inflação descontrolada. Para nós, o conservadorismo envolvia liberdade no sentido de livre mercado e de liberdade individual contraposta ao coletivismo. Não é isso que o Partido Republicano define como liberdade, hoje. Não muito tempo atrás, encontrei um de meus velhos amigos de Oxford, que hoje vive e trabalha em Washington. "Você sabe, Niall", ele me disse, "eu costumava me considerar conservador. Mas aprendi alguma coisa ao meu respeito desde que cheguei a este país. É que na verdade sou um liberal". Esses sentimentos ajudam a explicar por que tantos de nós, de Andrew Sullivan à revista "Economist", tenhamos terminado por apoiar Kerry.
Assim, por que ele perdeu? Afinal, saiu-se muito bem nos três debates presidenciais, e houve momentos em que fez com que Bush parecesse quase tão estúpido quanto seus críticos afirmam seja. E os democratas conseguiram atrair participação do eleitorado em números nunca vistos desde os anos 60. A resposta simples, evidentemente, é que os republicanos também levaram seu eleitorado às urnas, e o número de eleitores republicanos é ligeiramente maior. Portanto, tiremos nossos chapéus ao coordenador da campanha de Bush, Karl Rove, que conseguiu realizar um maravilhoso feito de mobilização política.
Mas Rove só conseguiu animar tanto os ativistas republicanos porque eles discerniam uma diferença significativa entre os dois candidatos à presidência, no que tange a questões cruciais. Qual era a diferença? De muitas maneiras, a chave pode ser encontrada em uma citação, parte de um perfil de Kerry publicado algumas semanas atrás na revista do "New York Times". No artigo, perguntavam a Kerry de que maneira ele enfrentaria o problema do terrorismo. E eis sua resposta: "Temos de voltar ao ponto em que vivíamos, quando os terroristas não eram o foco de nossas vidas, mas um incômodo. Como alguém que trabalhou no ramo da lei, sei que jamais será possível pôr fim à prostituição. Jamais poremos fim ao jogo ilegal. Mas vamos reduzi-lo, o crime organizado, a um patamar em que não possa crescer, não possa ameaçar as vidas das pessoas a cada dia e, fundamentalmente, seja algo que possamos continuar combatendo mas não ameace o tecido da vida cotidiana".
Em dois aspectos fundamentais, a resposta revela o que Kerry não percebe sobre o mundo posterior ao 11 de Setembro. Primeiro, a resposta demonstra que ele subestima a ameaça representada por organizações islâmicas radicais. Mas também demonstra que Kerry sofre cronicamente de um relativismo moral que pode ser a regra em Boston mas é profundamente repugnante aos cristãos norte-americanos. Um "nível aceitável" de terrorismo, prostituição, jogo ilegal e crime organizado não é que o que a maioria dos norte-americanos deseja como aspiração para seu presidente.
E é isso que o presidente Bush, que não perde a oportunidade de ressaltar sua fé cristã evangélica, compreende. São exatamente as simplificações excessivas que caracterizam seu primeiro mandato, exemplificadas por expressões como "eixo do mal", "guerra contra o terror" e "a marcha irresistível da liberdade", que ressoam de maneira irresistível em uma massa crítica de norte-americanos, em todo o país. Bush pode ser definido, e isso raramente é compreendido no Reino Unido, como um "norte-americano messiânico calvinista", alguém para quem os reveses são apenas um teste divino ao qual um presidente que "vive de fé" só pode reagir com determinação obstinada. E é por isso que os ataques de Kerry não bastaram para vencer a eleição ou convencer indecisos e relutantes.
A fé garantiu ao presidente Bush um segundo mandato. O que ele fará dessa oportunidade? A única coisa que se pode descartar é que ele tente sanar as divisões políticas. De maneira nenhuma.
Em setembro, Bush disse a líderes do Comitê Nacional Republicano exatamente o que pretendia fazer com a vitória que Deus reservou a ele. Primeiro, apontaria pelo menos um novo juiz para Corte Suprema preferencialmente conservador. Quanto à energia, prometeu "pressionar pela prospecção de reservas energéticas no Alasca e por maior uso de energia nuclear". Ele prometeu à platéia que iria "trabalhar forte por reformas tributárias fundamentais, reforma nas normas de processos judiciais e na privatização do sistema de scuridade social, assim que tomar posse".

Niall Ferguson é professor de história na Universidade Harvard e autor de "Colossus: The Rise and Fall of the American Empire" (colosso: ascensão e queda do império norte-americano).


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