São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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ARTIGOS

Vitória exibe o tamanho da direita

AMITY SHLAES
DO "FINANCIAL TIMES"

O resultado da eleição norte-americana pode dar a impressão de ser semelhante à de 2000. Na realidade, porém, 2004 é fundamentalmente diferente.
As lições de 2000 diziam respeito ao processo eleitoral: urnas e cédulas, financiamento de campanhas, decisões judiciais. As lições de 2004 dizem respeito à política -ou, mais precisamente, à vitória inusitada da política republicana e conservadora. Essa vitória solapou algumas das premissas que dominaram o ano eleitoral, entre elas a idéia de que a direita americana é basicamente marginal e desprezível. E é uma vitória que foi conquistada em três frentes: da política externa, da política social e a econômica.


Os eleitores não teriam ido às urnas em número recorde para votar em Bush se considerassem insanos seus esforços para fomentar a democracia no Oriente Médio. E não teriam votado nele se o vissem como fonte principal da instabilidade global


Comecemos com as dimensões do resultado. Bush recebeu milhões de votos a mais do que seu adversário. Ele teve mais votos até mesmo do que Ronald Reagan, até agora o mais votado na história presidencial norte-americana.
O Partido Republicano consolidou seu controle sobre a Câmara dos Deputados, conquistando vagas no sul do país à medida que democratas da velha guarda se aposentaram. Políticos republicanos também conquistaram vagas cruciais no Senado, afastando o líder da minoria no Senado, Tom Daschle, de Dakota do Sul.
Os democratas que conquistaram lugares no Congresso o fizeram com base em plataformas relativamente conservadoras. E tanto os eleitores democratas quanto os republicanos votaram a favor de várias propostas republicanas ou conservadoras.
No terreno da política externa, o resultado da eleição nos diz que, como os europeus, os americanos estão preocupados com o mundo e as ações dos EUA nele. Mas essa preocupação não se traduz na espécie de dúvida em grande escala em torno da liderança de Bush que vinha sendo prevista pelos observadores. Uma coisa ficou clara, mas precisa ser dita, mesmo assim: os eleitores não teriam comparecido às urnas em número recorde para dar seu voto a Bush se considerassem insanos seus esforços para fomentar a democracia no Oriente Médio. E não teriam votado nele se o vissem como fonte principal da instabilidade global.
E a política social, como ficou? Ao longo do ano, muitos observadores tinham sugerido que os valores sociais conservadores não apenas eram equivocados, mas também -o que talvez fosse fatal para eles- que seriam ultrapassados ou limitados à direita cristã. O ""The New York Times" publicou recentemente um artigo de 8.000 palavras baseado na tese de que a família gay já se tornou algo largamente aceito e que o país está pronto para formalizar a aceitação das famílias gays por meio de estruturas legais. Na terça-feira, porém, o eleitorado rejeitou essa idéia, tanto assim que, em todos os Estados em que a questão do casamento homossexual foi aventada, os eleitores votaram por sua proibição. Esse resultado deixa aqueles que supunham que estivesse ocorrendo um deslocamento nacional para a esquerda parecendo ""costeiros" e isolados, eles próprios.
No que diz respeito à questão racial, os conservadores e suas idéias se saíram bem. É o caso de Barack Obama, o candidato democrata a uma vaga no Senado. Obama, que é negro, arrasou com seu adversário não com base nas idéias democratas tradicionais sobre raça (de que a cor e a etnia são muito importantes), mas com uma mensagem centrista ou mesmo republicana: que os EUA precisam ser ""uma só nação", indiferente à raça.
Para concluir, há a questão da política econômica. Os problemas econômicos foram enfatizados durante toda a campanha: as pressões da globalização, as incertezas de uma mudança de uma economia industrial para uma baseada nos serviços, e a perda de empregos que acompanha essa mudança. São problemas sérios e difíceis de resolver. Mesmo assim, ao apoiar Bush, os eleitores reconheceram que o presidente acertou em questões fundamentais. Afinal, ""mais quatro anos" soa bom se quer dizer um índice de desemprego de 5,4% e crescimento anual da ordem de 3,7%.
Mais interessante ainda, os eleitores deixaram clara sua opinião sobre como foram obtidos esses resultados. A cultura republicana possui um lado que detesta a dívida governamental. Mas os republicanos não se opuseram a Bush pelo fato de ele não ter vetado projetos que implicam em grandes gastos do governo. Tampouco se afastaram dele por ter falado em reformar a Seguridade Social. E ratificaram seu enfoque sobre a idéia de tornar a economia relativamente competitiva, reduzindo os impostos e tomando outras medidas voltadas a incrementar a oferta. Na Carolina do Norte, o Estado natal do candidato democrata à vice-presidência, John Edwards, os eleitores entregaram uma vaga no Senado a Richard Burr, um republicano que se opõe radicalmente aos impostos, afastando Erskine Bowles, o muito admirado ex-chefe do Estado-maior de Bill Clinton. Os comentaristas manifestaram repetidas vezes sua surpresa pelo fato de a Louisiana ter eleito David Vitter, seu primeiro senador republicano desde a Guerra Civil. Mas o que realmente surpreende na vitória de Vitter é que ele provavelmente vai reforçar a tradição sulista de reduzir impostos.
Antes de votar em Bush nessas questões, muitos americanos já tinham ""votado com os pés". Na década de 1990, e desde então, a população americana migrou para Estados socialmente conservadores, em que os impostos são baixos e o governo tem atuação restrita. Pelo fato de suas populações estarem crescendo, os Estados republicanos vêm ganhando mais votos no Colégio Eleitoral. Tudo isso significou que Bush pôde conquistar em 2004 os mesmos Estados que conquistou em 2000, mas obter mais votos no Colégio Eleitoral.
Isso não quer dizer que os EUA não irão mudar de rumo novamente. O importante é que a surpresa generalizada diante da extensão da vitória republicana é importante. A América que decidiu esta eleição é uma América à qual muitos de nós não havíamos dado a atenção merecida -e é uma América que vale a pena conhecer melhor.

Tradução de Clara Allain


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