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ARTIGO
"A visão do Brasil que está em "Tristes Trópicos" esquentou meu coração"
Caetano Veloso relembra como o pensamento de Claude Lévi-Strauss repercutiu em sua música
CAETANO VELOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nosso movimento, que
queríamos chamar de
"som universal", terminou ganhando o apelido de
"tropicalismo" por causa da
instalação de Hélio Oiticica que
Luiz Carlos Barreto achou parecida com minha canção.
Foi Leon Hirschman quem,
tendo visto na casa de um amigo um volume de "Tristes Trópicos", pensou que um livro
com esse título deveria interessar a um dos criadores de tal
movimento, ainda mais que se
tratava de um que gostava de
ler livros filosóficos e teóricos.
Ele simplesmente roubou o
exemplar da casa em que o encontrou e me deu de presente.
A palavra "estruturalismo" estava aparecendo em textos de
jornais e em conversas. Eu vagamente sabia que o nome de
Lévi-Strauss estava ligado a ela. Abri o livro com uma curiosidade moderada. E fui tomado
de um interesse intenso a partir das primeiras frases. "Tristes Trópicos" me arrebatou. Eu
era fã de Sartre. Nunca esperei
que uma inteligência de ordem
tão diferente, mesmo antagônica, se impusesse com tanta rapidez sobre meu espírito.
O estilo (eu nunca tinha lido
Proust) também me impressionou: a calma dos parágrafos
longos e entremeados de observações secundárias que só lhe
aumentavam a clareza era educativa, agradável e elegante.
Mas foi a visão do Brasil que apareceu ali que esquentou meu coração.
Um pessimismo relativo à civilização brasileira (mitigado
pela bela passagem sobre a
USP, em que "num claro instante" pode tornar-se possível
uma intervenção relevante nos
destinos do mundo, por parte
de um bando de jovens paulistas inocentes -mas agravado
pela incompreensão total do
que seria Oswald de Andrade
ou a possibilidade de um modernismo brasileiro que contasse além da repulsa que a suposta beleza do Rio causava no
autor) contado paralelamente
às descobertas sobre as culturas pré-cabralinas, ensinava
novos modos de sentir-se o estar no mundo aqui.
Mais do que tudo, aparecia
um homem excepcional: sempre modesto, ele mantinha um
tom franco e inabalavelmente
lúcido. Os esboços das posições
originais que o tornariam mais
e mais célebre apareciam com
vigor, mas sem paixão.
Cheguei a escrever, alguns
anos depois, para meu governo,
que fazia sentido que, em oposição ao ateísmo apaixonado de
Sartre, surgisse uma espécie de
misticismo frio.
A profecia de que o Islã nunca seria a religião da tolerância
que se pretendia (culminando
numa impressionante comparação das figuras de Maomé e
Buda) repercutiu em mim de
modo indelével. Assim como o
horror ao "eu" cartesiano, embora a racionalidade que ele
sempre manteve nunca pudesse ser abalada, fosse pela "confusão entre sujeito e objeto"
dos existencialistas (seguindo
Husserl), fosse pela dialética
hegeliano-marxista (que os
existencialistas franceses terminaram por abraçar).
Marx e Freud eram, para ele,
antes exemplos de pensadores
que percebiam realidades inteligíveis em planos escondidos.
Enfim, se há alguns livros
que ficaram acesos em minha
memória desde que foram lidos
-e para sempre-, "Tristes
Trópicos" é um deles.
Por causa disso, li "O Pensamento Selvagem" (em Londres,
em inglês, porque os donos da
casa que aluguei tinham esquecido justo um exemplar dele na
estante vazia), depois "O Cru e
o Cozido". A polêmica com
"Crítica da Razão Dialética" no
primeiro e os argumentos contra a música atonal no segundo
são trechos a que voltei inúmeras vezes através dos anos.
O texto sobre a música sempre foi especialmente instigante para mim. Considero aquilo
um momento altíssimo na história do entendimento do que
seja a música. Ali também estão
embutidos argumentos anti-modernismo e anti-arte de
vanguarda a que ele se apegou
nas últimas décadas. Sinto uma
natural desconfiança dessa inclinação, mas acho estimulante
que algumas problematizações
não fossem evitadas.
Amo a resposta que Augusto
de Campos me deu quando lhe
reportei a impressão que me
causaram tais argumentos:
"São muito inteligentes, mas
quem levou a música para além
do tom foram os músicos, os
melhores entre eles -e eu confio mais em quem está com a
mão na massa". Mas aconselho
qualquer um a passar primeiro
pela "ouverture" de "O Cru e o
Cozido", relembrar a frase de
Augusto e depois tentar pensar
por conta própria.
Lévi-Strauss detestava a promiscuidade entre alta cultura e
cultura popular que via sendo
praticada por seus famosos
contemporâneos mais jovens:
"pop philosophie", pensadores
citando Bob Dylan e escrevendo sobre cinema, linguistas estudando letras de rock -na entrevista com Didier Éribon, ele
diz que jamais voltaria seu armamento teórico para nada
abaixo de Baudelaire.
Eu o citei nominalmente numa letra de música (numa entrevista em que lhe perguntaram sobre a citação em "O Estrangeiro" -"O antropólogo
Claude Lévi-Strauss detestou a
Baía de Guanabara: pareceu-lhe uma boca banguela"-, ele
disse, meio rindo, que tinha escrito essas palavras havia muito tempo); citei-o indiretamente em pelo menos duas outras:
o "num claro instante" de "Um
Índio" (diretamente do texto
sobre a USP) e "amor-mentira"
de "Tem que Ser Você" (aprendi com ele que os nhambiquara
chamam os atos homossexuais
praticados pelos jovens da tribo
de "amor-mentira").
Ele possivelmente não gostaria de se ver citado por um músico pop. E brasileiro. Vai saber.
Ele cultivava um certo amor
pelo Brasil, a terra onde suas
descobertas inaugurais surgiram, onde seu trabalho de etnógrafo fez possível suas investidas teóricas e mesmo filosóficas. Mas o título do seu primeiro livro não é tão carregado de
ternura quanto de desprezo e
desesperança (e aqui me lembro de uma quarta citação que
fiz dele em canção: a observação, em "Fora da Ordem", de
que "aqui tudo parece que é
ainda construção mas já é ruína"): o Brasil é figura grande na
geografia de "Tristes Trópicos",
mas está incluído numa visão
sombria que cobre toda a zona
tropical ao redor do globo.
Eu o vi uma vez na BBC falando inglês excelente com perfeito sotaque francês e exibindo
um caleidoscópio para ilustrar
sua ideia de estrutura e do número finito de possibilidades
de arranjo coletivo do homem.
Ele tinha uma cara muito bacana de judeu bondoso mas irônico, uma maravilhosa cara de
quem tem vocação para a longevidade (coisa de que ele antes
se queixava com modesta ironia, mas que a mim me parece
uma virtude). Em suma, eu gostava dele. Gostava de pensar
que ele, tão distante e tão próximo, estaria ainda sempre por
aí, como minha mãe e Niemeyer, o que me dá uma espécie
muito tranquila de saudade.
Peço desculpa aos estudiosos
sérios por tratar com tamanha
familiaridade uma figura tão
respeitável. Mas peço essas
desculpas por causa do carinho
que sinto e sempre senti por
ele. Mesmo no seu grande esnobismo contra o esnobismo
de massas.
Caetano Veloso é cantor e compositor baiano
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