|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
EUROPA
Última linha do lendário Routemaster deixará de circular nesta sexta; para os aficionados, retirada é uma tragédia
Sob protestos, ônibus-símbolo de Londres se aposenta
FÁBIO VICTOR
DE LONDRES
Bintu Bamba está aflita. Com 33
anos e dois filhos para criar, perderá o emprego em poucos dias.
Ela é cobradora da linha 159
(Marble Arch-Streatham), a última em funcionamento do Routemaster, o lendário ônibus londrino vermelho de dois andares,
com cara de caminhão e quinas
arredondadas, cuja imagem está
tão associada à cidade quanto a
dos táxis pretos ou a do Big Ben.
Na próxima sexta, sob protestos
e lamúrias de fãs enlutados, os velhos Routemasters param de circular. Bintu Bamba, que é da Costa do Marfim, vive há dez anos em
Londres e há cinco é cobradora.
"Daqui a pouco estarei na rua e
não tenho a mínima idéia do que
vou fazer para pagar meu aluguel", queixava-se na última
quinta-feira, à beira da escada no
segundo andar de um antigo e
conservado modelo, remanescente dos anos 60 como a maioria dos
derradeiros.
O cargo de cobrador -misto de
guia turístico, papeador e conselheiro que percorre o ônibus com
a função de vender e fiscalizar bilhetes- será extinta junto com os
ônibus. A quem tem habilitação a
Prefeitura de Londres ofereceu a
chance de um teste de motorista-faz-tudo, a modalidade que restará. Não é o caso de Bamba.
Para o batalhão de apaixonados
por esse ícone automobilístico, os
cobradores são a face humana de
uma perda de proporções muito
maiores, trágica até.
Será também o fim da plataforma traseira, sinônimo de liberdade e aventura, que permitia aos
passageiros pegar o ônibus em
movimento e dele assim saltar,
subir e descer ao seu bel prazer, e
não por imposição das paradas.
Acabarão as fileiras de bancos no
andar de cima, os forros em tartan
(o classudo xadrez escocês), o piso de ripas de madeira.
E, síntese de tudo, estará enterrada uma jóia do design e da engenharia. Projetados por Douglas
Scott, os Routemasters tinham
como encomenda abrigar mais
passageiros do que os ônibus da
época, mas sendo menores, mais
leves e mais confortáveis. A idéia é
que o transportado se sentisse como em seu carro. Foi um projeto
de seis anos até que o primeiro começasse a circular, em 1956. De
1954 a 1968, foram construídos
2.875 modelos. Boa parte deles rodou por mais de meio século apenas com pequenos reparos.
A Prefeitura de Londres, que
nos últimos anos vem retirando
gradativamente de circulação as
últimas linhas do Routemaster,
alega razões de segurança e acessibilidade. A plataforma traseira
foi responsabilizada por vários
acidentes, muitos dos quais custavam caro -no ano passado um
americano ganhou na Justiça
uma indenização de 3 milhões de
libras (R$ 12 milhões) porque teve
danos cerebrais causados por
uma queda. Além disso, dizem os
governantes, os velhos modelos
eram impraticáveis para deficientes físicos e não se adequariam à
futura lei européia do setor.
Os argumentos não seduziram
os londrinos. Uma pesquisa da
organização Policy Exchange
mostrou que 81% dos moradores
são contra a extinção dos Routemasters -o apoio é alto mesmo
entre os deficientes físicos.
Talvez para amenizar as críticas,
a prefeitura manterá duas linhas
turísticas, restritas ao centro.
Nas últimas semanas, com a
aproximação do fim das rotas
convencionais, amplificou-se o
ruído dos apaixonados pela causa. Foi lançado um livro-tributo,
"The Bus We Loved" (o ônibus
que amávamos), de Travis Elborough, pela Granta Books.
"Evidente que há um ingrediente sentimental, mas ele vem junto
com a experiência do dia-a-dia,
que mostra que os Routemaster
são melhores", disse Elborough à
Folha. "Há cinco anos foi feita
uma pesquisa que mostrou que
eram mais ecológicos e menos barulhentos que os ônibus novos.
Nestes, a experiência física e estética de viajar é incômoda."
Ele se refere aos double-deckers
modernos -com frente quadrada e sisuda, cadeiras em acrílico,
uma porta de entrada e outra de
saída, sem plataforma- e aos
"bendy buses", os ônibus-sanfona hoje visíveis em quase todas as
metrópoles do mundo.
A lista de viúvas do Routemaster é interminável, e a internet é
seu maior refúgio. Estão na rede o
movimento "Save The Routemaster", que tenta forçar a prefeitura
a rever a medida por meio de um
abaixo-assinado, uma associação
de aficionados na qual se pode
comprar um exemplar do ônibus
(www.routemaster.org.uk) e o
ensaio fotográfico "Last Stop",
um dos mais comoventes tributos
(www.routemasters.co.uk).
Na última semana a Folha conversou com vários passageiros, da
linha 159 e de outras. Ouviu elogios e reclamações sobre a aposentadoria do Routemaster.
"Claro que vai deixar saudades.
Eu lembro de, pequena, correr
com minhas irmãs para alcançar
a plataforma, era ótimo. Mas, em
1996, uma dessas irmãs caiu da
plataforma, ficou com amnésia. É
perigoso, estou satisfeita com os
novos", disse a estudante de economia Maryam Dantata, 26.
Entre os defensores há um brasileiro, o artista paulista Hilton
Mattos, 47, há 15 anos em Londres. "Os novos dão dor de cabeça, porque quando a porta fecha
não há circulação de ar, o aquecimento abafa tudo. No Routemaster isso não ocorre, porque a plataforma sempre aberta permite o
fluxo. Além do que esse tem um
toque romântico, de antigüidade,
lembra a "swinging London" dos
anos 60. Falta alma aos atuais."
O 159 cruza a ponte de Westminster, e a cobradora Bamba
continua a desfiar seu desalento.
"Está todo mundo triste, dizendo
que esses são mais confortáveis e
também mais rápidos, porque
não tem de esperar o motorista
trocar dinheiro." Passa a falar sobre o fim da sua profissão. "Já dei
muito dica, já consolei gente que
perdeu alguém, que você encontra no dia seguinte e pergunta "como está?", cria amizade."
"E tem muito turista", ela se empolga, "que não sabe falar inglês,
entra no ônibus e fica perdido. Eu,
ajudo também, porque falo francês e arranho italiano."
Nesse instante sobe pela escada
um sujeito de bigode e tira de uma
bolsa a tiracolo um gravador pesado. Fica radiante ao ouvir as últimas palavras de Bamba. "Você
fala francês, eu não acredito, que
maravilha", diz o homem, um repórter da rádio parisiense RTL,
que também estava ali para documentar o ocaso do ícone. Numa
de suas últimas viagens na linha
159, Bintu Bamba agora dá uma
entrevista em francês.
Texto Anterior: Saúde: Cruzada antifumo ganha oposição nos EUA Próximo Texto: Estranhos no paraíso: Pesquisa mapeia os brasileiros de Boston Índice
|