São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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EUROPA

Última linha do lendário Routemaster deixará de circular nesta sexta; para os aficionados, retirada é uma tragédia

Sob protestos, ônibus-símbolo de Londres se aposenta

FÁBIO VICTOR
DE LONDRES

Bintu Bamba está aflita. Com 33 anos e dois filhos para criar, perderá o emprego em poucos dias. Ela é cobradora da linha 159 (Marble Arch-Streatham), a última em funcionamento do Routemaster, o lendário ônibus londrino vermelho de dois andares, com cara de caminhão e quinas arredondadas, cuja imagem está tão associada à cidade quanto a dos táxis pretos ou a do Big Ben.
Na próxima sexta, sob protestos e lamúrias de fãs enlutados, os velhos Routemasters param de circular. Bintu Bamba, que é da Costa do Marfim, vive há dez anos em Londres e há cinco é cobradora. "Daqui a pouco estarei na rua e não tenho a mínima idéia do que vou fazer para pagar meu aluguel", queixava-se na última quinta-feira, à beira da escada no segundo andar de um antigo e conservado modelo, remanescente dos anos 60 como a maioria dos derradeiros.
O cargo de cobrador -misto de guia turístico, papeador e conselheiro que percorre o ônibus com a função de vender e fiscalizar bilhetes- será extinta junto com os ônibus. A quem tem habilitação a Prefeitura de Londres ofereceu a chance de um teste de motorista-faz-tudo, a modalidade que restará. Não é o caso de Bamba.
Para o batalhão de apaixonados por esse ícone automobilístico, os cobradores são a face humana de uma perda de proporções muito maiores, trágica até.
Será também o fim da plataforma traseira, sinônimo de liberdade e aventura, que permitia aos passageiros pegar o ônibus em movimento e dele assim saltar, subir e descer ao seu bel prazer, e não por imposição das paradas. Acabarão as fileiras de bancos no andar de cima, os forros em tartan (o classudo xadrez escocês), o piso de ripas de madeira.
E, síntese de tudo, estará enterrada uma jóia do design e da engenharia. Projetados por Douglas Scott, os Routemasters tinham como encomenda abrigar mais passageiros do que os ônibus da época, mas sendo menores, mais leves e mais confortáveis. A idéia é que o transportado se sentisse como em seu carro. Foi um projeto de seis anos até que o primeiro começasse a circular, em 1956. De 1954 a 1968, foram construídos 2.875 modelos. Boa parte deles rodou por mais de meio século apenas com pequenos reparos.
A Prefeitura de Londres, que nos últimos anos vem retirando gradativamente de circulação as últimas linhas do Routemaster, alega razões de segurança e acessibilidade. A plataforma traseira foi responsabilizada por vários acidentes, muitos dos quais custavam caro -no ano passado um americano ganhou na Justiça uma indenização de 3 milhões de libras (R$ 12 milhões) porque teve danos cerebrais causados por uma queda. Além disso, dizem os governantes, os velhos modelos eram impraticáveis para deficientes físicos e não se adequariam à futura lei européia do setor.
Os argumentos não seduziram os londrinos. Uma pesquisa da organização Policy Exchange mostrou que 81% dos moradores são contra a extinção dos Routemasters -o apoio é alto mesmo entre os deficientes físicos.
Talvez para amenizar as críticas, a prefeitura manterá duas linhas turísticas, restritas ao centro.
Nas últimas semanas, com a aproximação do fim das rotas convencionais, amplificou-se o ruído dos apaixonados pela causa. Foi lançado um livro-tributo, "The Bus We Loved" (o ônibus que amávamos), de Travis Elborough, pela Granta Books.
"Evidente que há um ingrediente sentimental, mas ele vem junto com a experiência do dia-a-dia, que mostra que os Routemaster são melhores", disse Elborough à Folha. "Há cinco anos foi feita uma pesquisa que mostrou que eram mais ecológicos e menos barulhentos que os ônibus novos. Nestes, a experiência física e estética de viajar é incômoda."
Ele se refere aos double-deckers modernos -com frente quadrada e sisuda, cadeiras em acrílico, uma porta de entrada e outra de saída, sem plataforma- e aos "bendy buses", os ônibus-sanfona hoje visíveis em quase todas as metrópoles do mundo.
A lista de viúvas do Routemaster é interminável, e a internet é seu maior refúgio. Estão na rede o movimento "Save The Routemaster", que tenta forçar a prefeitura a rever a medida por meio de um abaixo-assinado, uma associação de aficionados na qual se pode comprar um exemplar do ônibus (www.routemaster.org.uk) e o ensaio fotográfico "Last Stop", um dos mais comoventes tributos (www.routemasters.co.uk).
Na última semana a Folha conversou com vários passageiros, da linha 159 e de outras. Ouviu elogios e reclamações sobre a aposentadoria do Routemaster.
"Claro que vai deixar saudades. Eu lembro de, pequena, correr com minhas irmãs para alcançar a plataforma, era ótimo. Mas, em 1996, uma dessas irmãs caiu da plataforma, ficou com amnésia. É perigoso, estou satisfeita com os novos", disse a estudante de economia Maryam Dantata, 26.
Entre os defensores há um brasileiro, o artista paulista Hilton Mattos, 47, há 15 anos em Londres. "Os novos dão dor de cabeça, porque quando a porta fecha não há circulação de ar, o aquecimento abafa tudo. No Routemaster isso não ocorre, porque a plataforma sempre aberta permite o fluxo. Além do que esse tem um toque romântico, de antigüidade, lembra a "swinging London" dos anos 60. Falta alma aos atuais."
O 159 cruza a ponte de Westminster, e a cobradora Bamba continua a desfiar seu desalento. "Está todo mundo triste, dizendo que esses são mais confortáveis e também mais rápidos, porque não tem de esperar o motorista trocar dinheiro." Passa a falar sobre o fim da sua profissão. "Já dei muito dica, já consolei gente que perdeu alguém, que você encontra no dia seguinte e pergunta "como está?", cria amizade."
"E tem muito turista", ela se empolga, "que não sabe falar inglês, entra no ônibus e fica perdido. Eu, ajudo também, porque falo francês e arranho italiano."
Nesse instante sobe pela escada um sujeito de bigode e tira de uma bolsa a tiracolo um gravador pesado. Fica radiante ao ouvir as últimas palavras de Bamba. "Você fala francês, eu não acredito, que maravilha", diz o homem, um repórter da rádio parisiense RTL, que também estava ali para documentar o ocaso do ícone. Numa de suas últimas viagens na linha 159, Bintu Bamba agora dá uma entrevista em francês.


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