São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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Ascensão de extremistas expõe dilema da democracia

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Desde 21 de abril último, quando o líder de extrema direita Jean-Marie Le Pen passou para o segundo turno da eleição presidencial francesa -com um programa que contém pontos no mínimo controversos-, uma pergunta inquieta a cena política do país: partidos "não-democráticos" devem ter o direito de participar do jogo político democrático ou não?
Embora, por princípio, qualquer formação política deva poder expor suas idéias na arena política de um sistema democrático, vários aspectos da questão tornam a resposta bastante complexa, de acordo com especialistas ouvidos pela Folha. Afinal, entre outros pontos, a definição do que é ou não é democrático depende do quadro legal de cada país, do contexto histórico do local em que o tema é debatido etc.
Segundo Marc Sadoun, do Centro de Estudo da Vida Política Francesa, a questão já foi tratada tanto no âmbito da filosofia quanto no da prática política. "Baseando-se no conceito do direito de defesa da democracia liberal, boa parte dos filósofos liberais, incluindo os da chamada "esquerda moderna" -como o alemão [Jürgen" Habermas e o americano [John" Rawls-, estudou o tema."
"Atualmente, as doutrinas desses dois autores norteiam o debate filosófico sobre a democracia liberal. Ou seja, sobre o grau de liberdade que pode ou deve haver num sistema democrático. Essas doutrinas buscam encontrar um ambiente no qual indivíduos que não compartilham os mesmos valores e as mesmas concepções políticas possam chegar a um consenso que permita a evolução do debate", acrescentou Sadoun.
Apesar de terem interpretações diferentes do funcionamento do sistema, Habermas e Rawls procuram estabelecer os princípios comuns do liberalismo, o que, na prática, significa determinar até que ponto a democracia liberal deve admitir a participação de extremistas em sua cena política.
"Para Habermas, os indivíduos devem pôr de lado questões absolutamente irreconciliáveis, às quais ninguém estaria disposto a renunciar, para poder debater temas que podem propiciar um consenso. Assim, a religião, por exemplo, não pode ser discutida no espaço político, pois envolve dogmas", explicou Sadoun.
Todavia, para Habermas, isso pressupõe que as pessoas que participam da discussão ou da deliberação política compartilhem um certo número de valores para que, a partir deles, possam dar seguimento ao processo político. Ademais, isso pode englobar tanto valores quanto procedimentos. Este último aspecto deu origem à chamada "democracia de procedimentos", segundo Sadoun.
Assim, no caso prático da Frente Nacional (FN), de Le Pen, o simples fato de que ela participa do jogo político e, por enquanto, respeita suas regras legitima sua presença na arena política francesa, de acordo com os especialistas. Afinal, ela aceita a "democracia de procedimentos", ou seja, as chamadas convenções do sistema, como a representatividade dos partidos e o sufrágio universal.
"Na França, os partidos extremistas -de direita ou de esquerda- continuarão tendo o direito de existir e de participar da cena política enquanto respeitarem o quadro legal do país. Não há motivo ideológico-legal que os impeça", analisou Michel Wieviorka, diretor do Centro de Análise e de Intervenção Sociológicas (Paris).
A discussão não é recente no país, pois teve início na década de 30, quando a democracia francesa foi desafiada pelas ligas de extrema direita. Mais tarde, após a assinatura de um acordo de não-agressão entre a Alemanha nazista, de Adolf Hitler, e a URSS, de Josef Stálin -o pacto Ribentrop-Molotov (1939)-, foi levantada a questão do banimento do Partido Comunista Francês (stalinista).
Também nos anos 60, quando houve o surgimento de grupos de extrema direita (Occident), e na década de 70, quando ganharam força movimentos de extrema esquerda, como a Liga Comunista Revolucionária, o tema da interdição dos partidos extremistas foi discutido em território francês.
Contudo nem mesmo em meados da década de 80 -com o fortalecimento da FN- a idéia foi levada adiante, já que, no sistema ideológico-legal francês, qualquer formação política que respeite os limites impostos pelos "mecanismos nacionais de defesa da democracia liberal" tem o direito de participar do jogo político.
"Tudo o que se refere aos direitos dos partidos não-democráticos depende da conjuntura, da história de cada país. Não se trata de nada absoluto, pois cada Estado estabelece seus próprios mecanismos de defesa da democracia. No quadro francês, ainda faz sentido admitir a existência da FN", analisou Eric Fassin, professor na Escola Normal Superior (Paris).
Porém, na França, essas formações não podem defender abertamente idéias racistas, xenófobas ou nazistas. Por outro lado, no contexto histórico-legal dos EUA, a liberdade de expressão é prioritária e garantida pela Primeira Emenda à Constituição, o que autoriza esse tipo de discurso. Já na Alemanha, os mecanismos de proteção da democracia são ainda mais rígidos do que na França.
"Em alguns Estados, o peso histórico é determinante. Na Alemanha, há o medo da volta do nazismo e de suas sequelas", declarou o historiador Michel Vovelle. Assim, a Lei Fundamental da República Federal Alemã (1949) proíbe, entre outros pontos, a existência de partidos que preconizam -direta ou indiretamente- a destruição do sistema democrático e a discriminação racial.
Pode-se, portanto, afirmar que, no quadro histórico-legal francês, a participação da FN continuará legítima contanto que ela saiba manter uma segura distância formal do que é considerado ofensivo aos mecanismos de proteção da democracia liberal.
Proibir a FN poderia surtir efeito deletério: solidificar sua posição na sociedade. "Seria perigoso banir a FN. Ela é apoiada por uma parcela significativa do eleitorado, que também tem direitos políticos. Isso poderia provocar grandes protestos -com mais de 5 milhões de simpatizantes da extrema direita-, o que seria nefasto para a democracia", afirmou Dominique Reynié, do Instituto de Estudos Políticos de Paris.


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