São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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Jardim não pode ser entregue à serpente

SALMAN RUSHDIE

Eis que estamos mais uma vez no mundo do Cândido de Voltaire. É fácil enxergarmos nosso mundo do século 21 refletido naquele conto alegre sobre um século 18 inundado de sangue, em que catástrofes, estupros, enforcamentos, terremotos e sífilis espreitavam os personagens em cada esquina. No universo fictício de Voltaire, assim como em nosso universo real até demais, havia muitos problemas entre europeus e muçulmanos: um personagem teve sua nádega decepada por ordem de um imã, e, atendendo ao desejo de outro, o filósofo Pangloss foi ""espancado até ficar roxo". A esperança existia apenas para ser jogada por terra; o amor, para ser amaldiçoado; e o inocente Cândido só podia conquistar a bela Cunegunda depois de ela ter sido transformada em bruxa feia.
De alguma maneira, Pangloss, o leibniziano homem de idéias, professor da doce ciência da ""metafísico-teológico-cosmológico-macarrãologia" e protótipo de todos os nossos ""instrutores de realidade" contemporâneos (o termo é de Saul Bellow), apegava-se a sua fé em que ""tudo acontece para o bem neste melhor de todos os mundos possíveis".
Ao final de seu caminho violento, porém, Cândido optou pela quietude, concluindo com a famosa frase ""il faut cultiver notre jardim" [é preciso cultivar nosso jardim". Seu amigo Martin concordou: ""Trabalhemos sem discutir. É a única maneira de tornar a vida tolerável". Assim, a grande fábula de Voltaire termina com a sugestão de que, em tempos medonhos, faremos bem em afastar nosso pensamento dos assuntos de grande monta e simplesmente cultivar nossos jardins.
Voltaire não era, entretanto, o tipo de pensador que recomendaria a apatia como cura geral para os males da vida. No entanto, tão grande é nossa tendência a fazer leituras descuidadas e a pensar de modo ainda mais descuidado, que a conclusão de sua mais celebrada obra de ficção acabou sendo entendida como exatamente isso, sendo interpretada como a ratificação da apatia, da passividade e do distanciamento da luta.
É um caso de apatia equivocada, exatamente como esse, que, em nosso assustador presente, permitiu a ""lepenização" do processo político francês e levou a França a dar um dos maiores tropeços democráticos de sua história moderna. Ocupada em cultivar seu jardim, a França descobriu, tarde demais, que uma cobra venenosa estava escondida no meio do gramado.
De tempos em tempos um eleitorado resolve dar de ombros e decidir que não existe muita diferença entre os principais candidatos a um mesmo cargo. A realidade pega os eleitores pelo pé no dia seguinte à eleição, mas aí já é tarde demais. A última vez que isso aconteceu no Reino Unido, a consequência foi o prolongado e prejudicial reinado de Margaret Thatcher. A apatia dos eleitores também foi um fator crucial -talvez o grande fator crucial- na eleição presidencial Bush-Gore; como resultado, o fiasco na Flórida transformou-se num acontecimento decisivo, coisa que nunca deveria ter sido.
Agora o mal-estar atingiu a França e, embora Lionel Jospin tenha assumido (com razão) a responsabilidade por sua campanha pouco brilhante, como a de Al Gore, ele não é o único a ter errado. Existe na política um velho ditado segundo o qual o eleitorado nunca se engana -mas, desta vez, ele se enganou, sim. Talvez seja o eleitorado francês que devesse renunciar, em lugar de Jospin, abrindo espaço para eleitores novos, mais interessados em assumir suas responsabilidades.
É uma verdade terrível de nossos tempos medonhos que as pessoas que parecem se importar menos com a liberdade e a democracia são as que têm o acesso mais fácil a esses tesouros. Nos anos que se seguiram à fatwa [decreto religioso, no caso uma sentença de morte" do aiatolá Khomeini contra mim, a perda do meu direito ao voto (quando se vive em ""endereço desconhecido", não se pode fazer a inscrição de eleitor) foi uma das privações que mais senti. No entanto, quando eu mencionava o fato, ninguém parecia pensar que eu tivesse perdido alguma coisa importante. Desde então, a desilusão e o cinismo dos eleitores só têm feito aumentar. Os cidadãos marginalizados das muitas tiranias existentes no mundo têm todo direito de se sentirem revoltados quando aqueles que possuem esses privilégios atribuem tão pouco valor a eles e os desperdiçam tão facilmente.
Os eleitores franceses não têm nem mesmo a desculpa de Cândido, de exaustão pós-cataclísmica. A violência em alto nível que é própria do mundo de hoje não está acontecendo em solo francês. Nenhum mulá caolho propôs a talebanização do modo de vida francês, nenhum Osama messiânico comprou o aparato do Estado francês para usá-lo a serviço do terrorismo. Não há terroristas suicidas rondando o metrô parisiense. A França não é Gujarat [Estado indiano", onde o pavoroso governo estadual presidiu a chacinas em massa enquanto o premiê indiano fez que não estava vendo nada, e tampouco foi traumatizada por qualquer coisa que se assemelhe de longe ao horror de Jenin [cidade palestina".
A França ainda é a França, mesmo que, nos últimos tempos, pareça andar realizando a proeza difícil e nada iluminada de manifestar tendências anti-semitas e antiárabes simultaneamente.
O modo de vida francês ainda está entre os mais desejáveis do mundo e, é impossível negar, os mais civilizados. Mas essa continuidade cômoda gerou algumas ilusões perigosas, especialmente entre a esquerda. A decisão tomada pela esquerda de propor diversos candidatos, dividindo o voto anti-Chirac, criou a fresta pela qual Jean-Marie Le Pen iniciou seu avanço. Decisões desse tipo só podem ser tomadas por pessoas que sentem tanta certeza da sobrevivência do status quo que podem assumir riscos estúpidos com o futuro.
O que dizer da insensatez da esquerda européia? Como e onde ela vai dar seu próximo tropeço? Cinco minutos atrás, ela estava se opondo à ação militar que depôs o Taleban e quase certamente impediu uma série de ataques terroristas contra o Ocidente. Tendo errado no caso do Afeganistão, a esquerda agora errou também na França. Desta vez, felizmente, o eleitorado francês terá uma oportunidade de consertar o erro. O preço a pagar será outros tantos anos sob a égide de Jacques Chirac. Mas ele terá de ser pago. O jardim não pode ser entregue à serpente.


Salman Rushdie, 54, britânico de origem indiana, é autor de "Versos Satânicos"



Tradução de Clara Allain



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