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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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ARTIGO

JEFFREY SACHS

Mundo deveria negar ajuda a Bush no Iraque

Os Estados Unidos querem que, numa reunião de países doadores a ser realizada em Madri em outubro, o mundo se comprometa a dedicar bilhões de dólares à reconstrução do Iraque. A resposta do mundo deveria ser um "não" inequívoco.
A reconstrução de longo prazo do Iraque não exige assistência financeira do exterior. O que ela requer é um acordo político, e isso só será possível com a retirada do Exército norte-americano de ocupação.
Os bilhões de dólares que os EUA tentam obter deveriam ser dirigidos para a solução de emergências globais reais, tais como a luta contra a Aids e a fome.
A administração George W. Bush lançou sua guerra contra o Iraque provavelmente porque tencionava fazer do país uma nova base para as operações militares americanas na região do golfo Pérsico.
Após os atentados do 11 de Setembro, o governo americano quis retirar suas tropas da Arábia Saudita e, ao que parece, escolheu o Iraque como sua nova base operacional de longo prazo.
Acredito que seja por isso que os EUA se opõem de maneira tão intransigente à transferência, no curto prazo, da soberania para os iraquianos.
Um Iraque realmente soberano pode muito bem mandar as tropas dos EUA se retirarem de seu território.
Enquanto os EUA permanecerem como força de ocupação no Iraque, é pouco provável que o país alcance a necessária estabilidade política.
Sem estabilidade política, a recuperação econômica iraquiana também se torna pouco provável.
Os EUA são vistos por muitos iraquianos como potência de ocupação colonial, e, portanto, são alvo de ataques não apenas por parte das forças leais a Saddam Hussein, mas também de nacionalistas iraquianos de tendências diversas, sem falar em combatentes árabes de países vizinhos.
Os ataques contra a ocupação americana estão destruindo não apenas vidas, mas também a economia iraquiana. Os atacantes já conseguiram interromper a saída de grande parte do petróleo exportado pelo país.
O oleoduto que liga o norte do país à Turquia já foi alvo de repetidas explosões e está funcionando apenas esporadicamente, quando funciona.
Os campos petrolíferos do sul do Iraque não têm eletricidade suficiente para operar com sua plena capacidade porque a grade elétrica também vem sendo alvo de atentados repetidos.
De fato, consta que o Iraque está extraindo apenas entre 1 milhão e 2 milhões de barris de petróleo por dia, em lugar dos 2 milhões a 3 milhões de barris por dia que poderia alcançar facilmente em situação de paz.
É essa escassez de ganhos com o petróleo a verdadeira causa da crise financeira iraquiana, não a falta de assistência externa.
Cada redução de 1 milhão de barris por dia se traduz em receita de cerca de US$ 30 milhões por dia perdida, ao preço mundial atual de US$ 30 por barril.
Isso quer dizer que, se o Iraque aumentasse suas exportações em 1 milhão de barris por dia -algo que o país poderia facilmente fazer desde que os ataques contra sua infra-estrutura cessassem-, o país teria aproximadamente US$ 10 bilhões por ano de receita adicional com a qual dar início à reconstrução.
A produção petrolífera do Iraque provavelmente poderia subir para aproximadamente 5 milhões de barris por dia no prazo de três anos.
Isso representaria de 3 milhões a 4 milhões de barris por dia além da produção atual, ou seja, de US$ 30 bilhões a US$ 40 bilhões por ano -o bastante não apenas para restaurar os serviços básicos no país, mas também para garantir avanços importantes a médio prazo em termos de padrões de vida da população e de crescimento econômico.
Nesse nível de produção, o Iraque seria um país de renda média, com PNB (Produto Nacional Bruto) per capita de vários milhares de dólares por ano, incluindo a produção não-petrolífera. Em suma, o país não precisaria de nenhuma assistência oficial ao desenvolvimento.
Os maiores custos no Iraque não dizem respeito à reconstrução, mas às tropas americanas. Os Estados Unidos estão gastando nada menos do que US$ 51 bilhões por ano para manter 140 mil homens estacionados no país -um custo espantoso de US$ 360 mil por soldado por ano.
Os EUA poderiam poupar dezenas de bilhões de dólares por ano se retirassem o quanto antes suas tropas do Iraque.
Se, depois disso, dessem ao governo do Iraque em 2004 apenas uma fração do dinheiro poupado, não faltaria receita extra para a administração do país e para financiar a retomada da produção petrolífera.
Além do desperdício chocante de vidas e de dinheiro com a Guerra do Iraque, os EUA prestaram outro grande desserviço ao mundo.
Ao centrar a atenção mundial sobre uma crise econômica na realidade inexistente, desviaram a atenção pública de crises sérias e reais.
O mundo aplaudiria em pé se, na reunião de países doadores marcada para este mês, os EUA convocassem os presentes a voltar sua atenção a questões que realmente são de vida ou morte, como o combate à Aids e à fome.
Considere-se a batalha contra a Aids, a tuberculose e a malária. Cerca de 8 milhões de pobres no mundo vão morrer em 2004 dessas três doenças tratáveis e que podem ser prevenidas.
Em 2001 o mundo criou o Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária. No entanto, para o ano fiscal de 2004, a administração George W. Bush já reservou US$ 71 bilhões para o Iraque e apenas US$ 200 milhões para o Fundo Global.
Para cada dólar endereçado ao Fundo Global, o governo Bush está mandando US$ 350 para o Iraque. São prioridades grosseiramente distorcidas.
E, o que é ainda pior, os EUA estão encorajando outros países doadores a cometerem o mesmo erro.
Chegou a hora de o mundo ser intransigente com os EUA, dizendo que outros países não vão financiar a ocupação americana do Iraque.
Os EUA precisam deixar claro que pretendem retirar suas tropas em prazo curto e por completo. Ademais, os EUA devem parar de desperdiçar tanto dinheiro com gastos militares e redirecionar seus esforços para os setores mais pobres da população mundial.
É um esforço financeiro com o qual o mundo pode e deve colaborar.


Jeffrey D. Sachs é professor de economia e diretor do Instituto da Terra da Universidade Columbia.

Tradução de Clara Allain


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