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São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2003

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DIREITOS HUMANOS

Irene Khan, dirigente da entidade, diz à Folha que liberdades civis perdem terreno em todo o mundo

Anistia denuncia maior tolerância a abusos

Ivan Sekretarev - 30.out.2003/Associated Press
Mulheres iraquianas choram no momento em que soldados americanos prendem seus parentes em casa, durante busca em Tikrit


FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO

A guerra ao terror liderada pelos EUA provocou um grande retrocesso na manutenção de direitos humanos em todo o mundo. Nos países desenvolvidos, esse retrocesso inclui a crescente opinião de que algumas liberdades civis precisam ser sacrificadas em nome da segurança, segundo a secretária-geral da Anistia Internacional, Irene Khan, 46.
Em entrevista à Folha por telefone, de Londres, Khan criticou a política de segurança americana, mas se disse otimista com a América Latina.
A ativista visitará pela primeira vez o Brasil a partir desta sexta-feira. A programação inclui um encontro, ainda não confirmado, com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Também estão previstas reuniões com os governadores os governadores Rosinha Matheus (PMDB-RJ) e Geraldo Alckmin (PSDB-SP).
Nascida em Bangladesh, Khan está à frente da entidade há dois anos. É a primeira mulher muçulmana a dirigir a Anistia.
 

Folha - O último relatório anual da Anistia Internacional conclui que a guerra ao terrorismo liderada pelos EUA, e não o terrorismo em si, deixou o mundo mais inseguro. Quais são os problemas da atual estratégia?
Irene Khan -
O que vimos como resultado dessa guerra ao terror é que ela tem levado a sérios abusos dos direitos humanos em países que têm um histórico ruim. Eles têm usado a guerra ao terror como uma desculpa para perseguir dissidentes políticos e justificar violações aos direitos humanos.
A Colômbia é um exemplo. Em nome da luta contra o terror e as drogas, as restrições à venda de armas para a Colômbia, que os EUA haviam adotado, foram suspensas, mas os abusos aos direitos humanos não diminuíram nem o país ficou mais seguro em razão disso. Temos visto isso ocorrer na Ásia Central, no Egito, na China e em outros lugares.
Em países ocidentais, foram aprovadas leis que são um retrocesso aos princípios dos direitos humanos. Nos EUA, centenas de pessoas são mantidas presas em Guantánamo há quase dois anos sem julgamento, sem direito de serem ouvidas por Deus sabe quanto tempo.
Em todo o mundo, nós realmente vemos um retrocesso. Ao mesmo tempo, há um ressurgimento de violações aos direitos humanos por grupos armados. Continuamos a ver imensos atentados a bomba e ataques suicidas no Oriente Médio, em Marrocos, na Indonésia, e agora no Iraque há uma grande insurgência. O que vemos dos dois lados, governos e atores não-governamentais, é um aumento aos abusos dos direitos humanos. No meio, obviamente, estão as pessoas comuns.

Folha - Mas há alternativas de combate ao terrorismo?
Khan -
As pessoas têm de perceber que esses abusos e violações estão sendo combatidos de uma forma honesta. Isso significa respeitar as leis na forma como se prendem e processam as pessoas. Isso é muito importante porque, do contrário, cria-se mais ressentimento, alimentando esses grupos que usam a violência.
Em segundo lugar, creio que seja necessário examinar as fontes reais de insegurança. Há muito mais pessoas no mundo hoje que estão sendo ameaçadas por fome, Aids, comércio de armas e violência. Esses temas precisam receber atenção ao mesmo tempo. Isso serve tanto para o nível internacional e o combate ao terrorismo quanto para o Brasil e a guerra contra o crime.

Folha - A Anistia sempre criticou o regime do ex-ditador Saddam Hussein. Por que vocês foram contrários à invasão do Iraque, que pôs fim ao seu governo?
Khan -
A Anistia tem enfocado os abusos de Saddam e expôs suas atrocidades cometidas em 1980. Naquela época, os EUA não queriam ouvir sobre dramas como o uso de gás contra a população curda. Éramos muito claros sobre o regime de Saddam. Desde antes da guerra estávamos muito preocupados sobre os efeitos na população civil iraquiana. Essas pessoas foram vítimas de Saddam e seriam mais uma vez expostas aos perigos da guerra e às incertezas que seriam criadas após o conflito. Há cerca de um ano, levamos isso ao Conselho de Segurança da ONU e ao governo americano. Certamente, queríamos que a comunidade internacional agisse contra Saddam, mas também defendíamos que a ação não expusesse a população iraquiana a mais abusos.

Folha - A sra. disse que, mesmo nos países desenvolvidos, a situação piorou após o 11 de Setembro. A sra. acredita que isso vá melhorar no curto prazo?
Khan -
Há duas tendências nos países desenvolvidos. Em alguns deles, há novas leis que restringem a liberdade. Essas leis não têm sido necessariamente colocadas em prática, mas há uma onda na opinião pública afirmando que isso aumenta a segurança e e que permite com rapidez a restrição das liberdades civis. Esse comportamento pró-segurança é sentido de forma muito dura por refugiados e imigrantes. E também há o caso dos EUA, onde existem centenas de pessoas que foram detidas no território americano por razões de seguranças, que também não têm acesso à revisão de seus casos. Mas, no caso de Guantánamo, a questão é: isso realmente melhorou a segurança? Se se restringem e violam direitos humanos, há um aumento da segurança? Não acho que esteja melhorando.

Folha - A América Latina tem um histórico de abusos dos direitos humanos, sobretudo a Colômbia. Como a sra. vê essa região num futuro próximo?
Khan -
A Colômbia é um país que tem sofrido enormes abusos dos direitos humanos no contexto do conflito armado interno. Há outras áreas da América Latina que também têm uma história violenta, onde os problemas continuam.
No Brasil, temos visto uma grande disparidade social, com abusos dos direitos humanos ocorrendo em diferentes níveis, assassinatos pela polícia, exclusão social, luta pela terra, enfim, um desarranjo muito complexo dos direitos humanos. Por outro lado, há uma forte mensagem de esperança, vinda de movimentos sociais, que têm crescido na América Latina. Estou otimista.

Folha - A sra. é a primeira mulher muçulmana à frente da Anistia. Neste ano, a iraniana Shirin Ebadi também foi a primeira muçulmana a ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Em países não-ocidentais, sempre há o argumento de que os direitos humanos são uma construção do Ocidente e não respeitam a cultura local. Como a sra. se posiciona?
Khan -
Os direitos humanos estão baseados em valores universais. Não creio que conceitos de igualdade, justiça e honestidade pertençam apenas à civilização ocidental, mas a todas as civilizações que conhecemos, incluindo a minha. A religião islâmica também, todas as religiões têm esse conceito de onde surgiram os direitos humanos. Esses argumentos são utilizados por grupos interessados em promover sua própria agenda, que algumas vezes é contra a mulher, outras vezes é antidemocrática.

Folha - A Anistia está envolvida em uma grande campanha em favor do controle de armas pequenas. Como isso está sendo feito? A sra. conhece o Estatuto do Desarmamento, que tramita no Congresso brasileiro?
Khan -
A Anistia lançou uma grande campanha com [as ONGs] a Oxfam e a Rede Internacional de Ação contra Armas Leves porque vemos o comércio de pequenas armas como um fator crítico no aumento da violência. De fato, as verdadeiras armas de destruição em massa não são as químicas e biológicas, mas as armas pequenas, que matam cerca de 500 mil pessoas por ano. Eu não tenho detalhes sobre as propostas que o Congresso brasileiro está discutindo, mas em nossa campanha defendemos o controle em três níveis: o internacional e o controle do comércio de armas; no nível nacional, o que os governos podem fazer; e o que as comunidades podem fazer para impedir o uso de armas.


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