São Paulo, sexta-feira, 05 de novembro de 2004

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OPINIÃO

Um mundo à parte

Leia a seguir os principais trechos do editorial do "Le Monde" sobre o resultado da eleição norte-americana.
 
Dizer que a reeleição de George W. Bush é má notícia é pouco. Para a Europa como, sem dúvida, para o resto do mundo.
Mas, passada a decepção e o momento de incredulidade, como, afinal, depois de tudo, explicar a vitória de um homem que envolveu seu país em uma guerra travada em nome de uma mentira, seguida de um pós-guerra caótico, em meio à criação de um déficit abissal, destruindo de passagem um milhão de empregos etc.? Nós europeus temos um triplo problema. Não podemos mais nos permitir ilusões, desculpas ou escapatórias.
A ilusão seria crer que o segundo mandato Bush poderia, como dispõe o realismo, se assemelhar à promessa de um governo Kerry. Claro, dado o impasse no Iraque, é difícil imaginar Bush se lançando a uma segunda aventura militar. Ele reafirmou, assim que confirmada sua vitória eleitoral, que manteria os soldados norte-americanos no Iraque até que a missão esteja cumprida. Mas os quatro anos de Bush à frente da Casa Branca não parecem indicar uma moderação, de parte dele. Homem incapaz de dúvida e de autocrítica, convencido de que sua intuição é infalível, e de que Deus o inspira em suas ações, George W. Bush não deu sinal algum de que pretenda mudar ou se emendar.
E nem seria preciso afirmar que seu grande sucesso popular decerto reforçará algumas de suas idéias básicas: a batalha contra o Mal, o terrorismo, requer soluções simples; autoriza o abandono da arquitetura internacional; exonera os Estados Unidos de respeitar os preceitos do direito internacional; permite menor respeito, dentro e fora do país, com relação aos direitos humanos; e supõe, por fim e acima de tudo, privilegiar a força com relação à dissuasão, a ação militar com relação à política.
O horizonte internacional se torna, de certo modo, mais claro. A Europa sabe o que esperar de um homem que tende mais a desprezá-la do que a respeitá-la, e que de toda maneira continuará tentando dividi-la.
Os europeus tampouco têm desculpas. Não têm muito a ganhar se opondo aos fatos e gestos da "hiperpotência" norte-americana. Deveriam também se proteger contra a tentação de tornar o antiamericanismo sua ideologia, algo que poderia cegá-los. Porque a hiperpotência só é percebida como tal diante da impotência européia. O unilateralismo norte-americano só tem curso livre porque os aliados europeus não sabem ou não querem se fazer entender.
Mesmo que os americanos do oeste e do nordeste tenham demonstrado nas urnas sua proximidade com o velho continente, o coração dos EUA, a área que ocupa toda a região central, esse coração da América de Bush é, na realidade, um mundo à parte.
A eleição indica e confirma uma deriva mais profunda dos Estados Unidos, um afastamento ainda maior com relação à Europa. Enquanto esta organiza, em seu seio, o abandono de soberanias, aqueles adotam uma doutrina militar de hegemonia, tendo por objetivo impedir o surgimento de qualquer concorrência militar. Quando os europeus sublinham a importância de um tratamento singular dos conflitos que desestabilizam o mundo, no Oriente Médio e no Cáucaso, os norte-americanos declaram guerra a um inimigo indefinido, o terrorismo, como nova categoria do Mal. Enquanto os europeus se recusam a fazer de suas origens judaica-cristãs o cerne de sua nova Constituição, nos Estados Unidos a religião está no coração do debate político.
A reeleição de Bush serve para nos convencer de que o começo do século 21 é bem diferente do que sonhamos em 1989, quando caiu o Muro de Berlim. O mundo não se construiu sobre o modelo europeu. Talvez venha a surgir outro que misturará liberdade econômica e vigilância moral. Para que esse novo mundo não venha um dia a ser o nosso, a eleição americana deveria servir ao menos como um toque de despertar.


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