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OPINIÃO
Um mundo à parte
Leia a seguir os principais trechos do editorial do "Le Monde"
sobre o resultado da eleição norte-americana.
Dizer que a reeleição de George
W. Bush é má notícia é pouco. Para a Europa como, sem dúvida,
para o resto do mundo.
Mas, passada a decepção e o
momento de incredulidade, como, afinal, depois de tudo, explicar a vitória de um homem que
envolveu seu país em uma guerra
travada em nome de uma mentira, seguida de um pós-guerra caótico, em meio à criação de um déficit abissal, destruindo de passagem um milhão de empregos etc.?
Nós europeus temos um triplo
problema. Não podemos mais
nos permitir ilusões, desculpas ou
escapatórias.
A ilusão seria crer que o segundo mandato Bush poderia, como
dispõe o realismo, se assemelhar à
promessa de um governo Kerry.
Claro, dado o impasse no Iraque,
é difícil imaginar Bush se lançando a uma segunda aventura militar. Ele reafirmou, assim que confirmada sua vitória eleitoral, que
manteria os soldados norte-americanos no Iraque até que a missão esteja cumprida. Mas os quatro anos de Bush à frente da Casa
Branca não parecem indicar uma
moderação, de parte dele. Homem incapaz de dúvida e de autocrítica, convencido de que sua intuição é infalível, e de que Deus o
inspira em suas ações, George W.
Bush não deu sinal algum de que
pretenda mudar ou se emendar.
E nem seria preciso afirmar que
seu grande sucesso popular decerto reforçará algumas de suas
idéias básicas: a batalha contra o
Mal, o terrorismo, requer soluções simples; autoriza o abandono da arquitetura internacional;
exonera os Estados Unidos de respeitar os preceitos do direito internacional; permite menor respeito, dentro e fora do país, com
relação aos direitos humanos; e
supõe, por fim e acima de tudo,
privilegiar a força com relação à
dissuasão, a ação militar com relação à política.
O horizonte internacional se
torna, de certo modo, mais claro.
A Europa sabe o que esperar de
um homem que tende mais a desprezá-la do que a respeitá-la, e
que de toda maneira continuará
tentando dividi-la.
Os europeus tampouco têm
desculpas. Não têm muito a ganhar se opondo aos fatos e gestos
da "hiperpotência" norte-americana. Deveriam também se proteger contra a tentação de tornar o
antiamericanismo sua ideologia,
algo que poderia cegá-los. Porque
a hiperpotência só é percebida como tal diante da impotência européia. O unilateralismo norte-americano só tem curso livre porque
os aliados europeus não sabem ou
não querem se fazer entender.
Mesmo que os americanos do
oeste e do nordeste tenham demonstrado nas urnas sua proximidade com o velho continente, o
coração dos EUA, a área que ocupa toda a região central, esse coração da América de Bush é, na realidade, um mundo à parte.
A eleição indica e confirma uma
deriva mais profunda dos Estados
Unidos, um afastamento ainda
maior com relação à Europa. Enquanto esta organiza, em seu seio,
o abandono de soberanias, aqueles adotam uma doutrina militar
de hegemonia, tendo por objetivo
impedir o surgimento de qualquer concorrência militar. Quando os europeus sublinham a importância de um tratamento singular dos conflitos que desestabilizam o mundo, no Oriente Médio
e no Cáucaso, os norte-americanos declaram guerra a um inimigo indefinido, o terrorismo, como
nova categoria do Mal. Enquanto
os europeus se recusam a fazer de
suas origens judaica-cristãs o cerne de sua nova Constituição, nos
Estados Unidos a religião está no
coração do debate político.
A reeleição de Bush serve para
nos convencer de que o começo
do século 21 é bem diferente do
que sonhamos em 1989, quando
caiu o Muro de Berlim. O mundo
não se construiu sobre o modelo
europeu. Talvez venha a surgir
outro que misturará liberdade
econômica e vigilância moral. Para que esse novo mundo não venha um dia a ser o nosso, a eleição
americana deveria servir ao menos como um toque de despertar.
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